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A Formação da Rua São Bento

Autor: José Tadeu Ferreira Junior.
Orientador: Prof. Dr. Marcos José Carrilho.
Apoio: PIVIC Mackenzie.
 
Resumo: O propósito desta pesquisa foi realizar um levantamento da história da Rua São Bento, a fim de compreender a sua formação e as condicionantes responsáveis por suas principais transformações, abarcando sua formação a partir de pesquisas de fontes primárias. Neste processo desejou-se descrever as características de constituição e ocupação deste espaço; identificar e discriminar tipologias, segundo sua forma e ocupação dos edifícios no lote; reconstruir sua genealogia fundiária através da sobreposição das cartas: "Planta da Restauração da Capitânia" (1765/1774), "Planta da Cidade de São Paulo" (1810), "Mappa da cidade de São Paulo e seus subúrbios" (1841-7), "Planta da Cidade de São Paulo" (1881), Sara Brasil (1930), Vasp-Cruzeiro (1954) e Gegran (1972). Foram analisadas as ocupações nesse logradouro, no decorrer do tempo, através de fotos, mapas e registros bibliográficos, levantamento da situação atual e, sobretudo à partir dos processos de aprovação de obras da Prefeitura Municipal de São Paulo (1875 à 1921) disponíveis no Arquivo Histórico Municipal, Washington Luis (documentos que estão sendo disponibilizadas em um banco de dados, já existente).
Palavras-chave: Rua São Bento, formação, Centro Histórico.

Abstract: The purpose of this research was to conduct a survey of the history of Rua São Bento Street in order to understand their formation and the conditions responsible for their major transformations, covering its formation from research of primary sources. In this process wished describe the characteristics of formation and occupation of space; identify and discriminate typologies, according to his shape and occupation of buildings on the lot; rebuild their genealogy through overlapping letters land: "Planta da Restauração da Capitânia" (1765/1774), "Planta da Cidade de São Paulo" (1810), "Mappa da cidade de São Paulo e seus subúrbios" (1841-7), "Planta da Cidade de São Paulo" (1881), Sara Brasil (1930), Vasp-Cruzeiro (1954) e Gegran (1972). Where analyzed the occupations in this street, over time, through photos, maps and bibliographic records, survey of the current situation and especially from the Municipality of São Paulo?s approval process (1875 to 1921) available in Municipal Historical Archives, Washington Luis (documents being made available in a database that already exists).

Key-words: São Bento Street, formation, Historical Center.


A FORMAÇÃO DA RUA SÃO BENTO


Introdução

Inserida no que hoje se conhece como Centro histórico de São Paulo, a Rua São Bento é um importante fragmento da cidade por ser um dos mais antigos logradouros muito utilizado durante mais de quatro séculos da cidade.

A forma de ocupação territorial de São Paulo tem sido apontada por historiadores e estudiosos a partir da relação entre as condições da topografia local e os procedimentos vigentes entre os construtores portugueses à época da colonização. Fundada pelo Padre Jesuíta, Manoel da Nóbrega, a primeira povoação ocupou a colina situada na confluência vales dos rios Tamanduateí e Tietê.

O primeiro assentamento teve origem no local de construção da primeira igreja onde hoje se encontra o Pátio do Colégio, local de celebração da primeira missa em 25 de janeiro de 1554. Desde então até por volta de 1800, a cidade de São Paulo não mudou muito permanecendo com a aparência de arraial sertanista e local de pousos para viajantes e suas tropas.

Esta pesquisa pretende levantar e avaliar todos os processos de transformação da Rua São Bento identificando as principais condicionantes que levaram às mais marcantes modificações ao longo de seu eixo, da divisão fundiária até as alterações tipológicas e de uso, do século XIX até os tempos atuais.
 
Referencial Teórico

A expansão da vila para além dos limites de seus antigos muros, que delimitavam o burgo primitivo, tem início no século XVII por medidas propostas pelo Governador D. Luís de Souza que havia mandado traçar algumas ruas novas na vila, numa tentativa de regular o seu desenvolvimento.

Observando plantas antigas de São Paulo, verifica-se que diversas ruas de traçado regular partem em diversas direções a partir do núcleo inicial da vila (Figura 1). "No começo do século XVII - portanto em tempos de D. Francisco e de D. Luís - e nas décadas seguintes, foi deixada de lado a informalidade dos primeiros tempos, estabelecendo-se um pouco de disciplina urbanística. Dentro de suas limitações, eram novos tempos." (REIS FILHO, 2004, p. 40).

Segundo Nestor Goulart Reis Filho, "não temos informações sobre quais seriam as ruas traçadas por ordem do governador [...] um detalhe importante é que a Rua Direita e a de São Bento se cruzam em ângulo reto, o que caracteriza a presença de um profissional especialmente treinado, no momento de traçá-las. Ambas as ruas são extensas para a época, com larguras uniformes, cruzando-se em ângulo reto. O fato chamava a atenção dos antigos moradores, que denominavam esse cruzamento de 'quatro cantos'". (REIS FILHO, 2004, p. 40).
 





























Figura1 - Principais ruas retas abertas a partir da linha dos muros da vila, provavelmente no séc. XVII. Fonte: REIS FILHO, Nestor Goulart, São Paulo: vila cidade metrópole. p. 40.


O traçado dessas duas importantes ruas organizou até o final do século XVIII todo um lado da vila. Pontuando três referências arquitetônicas religiosas da época, Igreja e Convento de São Bento, São Francisco e do Carmo, se inscreve um triângulo imaginário que no século XX tornou-se conhecido como "triângulo do comércio". No seu interior as Ruas São Bento e Direita, acrescidas à Rua Quinze de Novembro, destacam-se como os principais eixos estruturadores de São Paulo no século XIX, até meados do século XX.
 

Método

A pesquisa foi elaborada a partir das seguintes etapas: levantamento in loco da situação atual da Rua São Bento e de seus imóveis; levantamento dos processos de aprovação da Prefeitura Municipal de São Paulo no Arquivo Histórico Washington Luis e análises das bases cartográficas e iconográficas de diferentes épocas.

O levantamento in loco do logradouro teve como produto 40 fichas referentes aos edifícios/lotes com dados como nome, número, número de pavimentos, data de construção e outros comentários pertinentes, além de fotografias de registro da situação atual (totalizando 500 fotos).

A segunda etapa da pesquisa foi o levantamento dos processos de aprovação de obras particulares junto ao Arquivo Histórico Municipal, onde foram obtidos dados de proprietários, datas de aprovação, projetos, construtores, arquitetos, tipos de uso, desenhos técnicos e memoriais descritivos. O levantamento abrangeu os anos de 1875 à 1921 e resultou no levantamento de 347 processos.

Com a análise das bases cartográficas, "Planta da Restauração da Capitânia" (1765/1774), "Planta da Cidade de São Paulo" (1810), "Mappa da cidade de São Paulo e seus subúrbios" (1841-7), "Planta da Cidade de São Paulo" (1881), Sara Brasil (1930), Vasp-Cruzeiro (1954) e Gegran (1972), foi possível reconstituir as genealogias fundiárias dos lotes da Rua São Bento através da sobreposição das cartas, identificando as diversas tipologias, segundo a forma e ocupação dos edifícios no lote, e a correspondente subdivisão nas quadras, além de alterações ocorridas no tempo devido a desmembramentos ou unificações de lotes. A pesquisa iconográfica acompanhou esse processo dando suporte para análises mais profundas das informações obtidas em planta, confirmando as modificações recorrentes.
 

Resultados e discussão

No final do século XIX a Cidade Imperial de São Paulo ainda possuía suas características coloniais. Tudo que acontecia na cidade se concentrava nos limites do triangulo formado pelos conventos de São Francisco, São Bento e Carmo. Os traçados das ruas ainda não estavam perfeitamente definidos e a existência de alguns muros defensivos, no primeiro século, poderia ter condicionado a definição do alinhamento de algumas ruas. Tratava-se então de uma cidade de terra isto é, seus muros e paredes eram de taipa.

Adotando para esse período a "Planta da Restauração da Capitânia" (1765/1774) (Figura 2), podemos observar o núcleo central da cidade já constituído e com o traçado de suas ruas bem definido. Nesta planta podemos observar a existência da Rua São Bento, que já foi chamada de "Rua que vai para São Bento", "Rua de São Bento que vai para São Francisco" e "Direita de São Bento" (a simplificação da nomenclatura se deu em 1647), e o seu percurso ligando o Largo de São Bento ao Largo de São Francisco. Conseguimos observar a delimitação de suas quadras, porém sem uma clara divisão dos lotes.

Essa planta nos mostra que nessa época, 1765/1774, a cidade já havia ocupado o sítio delimitado pelo "triângulo" ainda que com densidade reduzida, uma vez que podemos observar no desenho, a presença de vários quintais com representações de árvores e canteiros e diversas áreas não edificadas junto aos traçados das ruas. Ainda assim, a Rua São Bento estava entre as com maior concentração de edificações ao longo de seu percurso, preenchendo todo o perímetro da rua e grandes quintais nos fundos em direção ao Vale do Anhangabaú.

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 



























Figura 2 - Planta da Restauração com indicação da área de estudo. Fonte: Arquivo Histórico Militar, Rio de Janeiro. In São Paulo Vila Cidade Metrópole, de Nestor Goulart Reis Filho, p. 66 e 67.


Segundo Nestor Goular Reis, "Com a restauração da Capitania, teve início um processo de expansão da produção agrícola e do comércio inter-regional. Os tributos arrecadados em todos os registros da capitania eram recolhidos à cidade de São Paulo, possibilitando o aumento dos investimentos em obras de interesse regional. A chegada dos governadores envolvia necessariamente a presença de profissionais com melhores qualificações, que eram consumidores importantes." (REIS FILHO, 2004, p. 79).

 Em 1790, ao se iniciar a última década do século, sob administração de Bernardo de Lorena, o município contava com cerca de 8500 habitantes e o Governo da Capitania se empenhava em realizar obras públicas para atender à nova demanda econômica regional como estradas, pontes e chafarizes.

No início do século XIX, a cidade começava a sua expansão além Anhangabaú, como podemos observar na Planta da Cidade de São Paulo de 1810 (Figura 3), que registra os novos traçados e ocupações. Sabe-se que a cidade, contava nesse tempo com trinta e oito ruas, dez travessas e seis becos, tendo entre as suas mais habitadas a Rua São Bento com cinquenta e duas casas.
 
Figura 3 - Planta da Cidade de São Paulo, 1810. Fonte: https://geosampa.prefeitura.sp.gov.br/PaginasPublicas/_SBC.aspx


O levantamento cartográfico evidencia mais a diante duas outras plantas do século XIX em que podemos identificar quadras com a divisão dos lotes, o que nas cartas anteriores não era registrado. A primeira delas é denominada "Mapa da cidade de São Paulo e seus subúrbios", datada de 1841-7 realizada pelo engenheiro civil Carl Abraham Bresser, tendo sido a segunda realizada pela Companhia Cantareira de Água e Esgotos em 1881. (Figuras 4 e 5).
 
Figuras 4 e 5 - Pormenores da área desta pesquisa feitos sobre as plantas de 1841-7 e 1881, respectivamente
 

Pela planta de 1841, foram identificados 81 lotes ao longo da Rua São Bento. Já na planta de 1881, transcorridos 40 anos, foram contados 93 lotes decorrentes de desmembramentos de lotes situados ao longo da rua. Desses 12 lotes que surgem a mais na planta de 1881, 10 novos aparecem na quadra entre o Largo São Bento até a Rua da Quitanda, dois na quadra entre o Largo do Ouvidor e a Rua Direita e um entre o Beco da Lapa, atual Miguel Couto e a Rua São João.

É possível observar também outra transformação. O lote da esquina com a Rua São Bento, situado ao lado da antiga Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos desapareceu para a criação do Largo do Rosário. (Figuras 6, 7 e 8).
 
Figuras 6 e 7 - Pormenores da área desta pesquisa feitos sobre as plantas das figuras 8 e 9, respectivamente indicando a transformação do sítio da antiga Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, no Largo do Rosário, atual Praça Antônio Prado.

 
Figura 8 - Rua da Imperatriz, atual rua XV de Novembro, em 1862. Ao fundo, a antiga
Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, no Largo do Rosário, atual Praça Antônio Prado.
 
 
"São Paulo estava deixando de ser uma cidade de tropeiros. Agora, o café chegava a Santos mais rapidamente. A viagem da fazenda para a capital é rápida e confortável. Será possível, sem grande transtorno, passar parte do ano em São Paulo e talvez, por que não?, morar na capital. [...] O trem que desceu carregado de café pode, agora, subir com material de construção para se fazer uma casa igual àquela vista em alguma capital europeia." (TOLEDO, 2007, p. 77).

A cidade mantinha até então seu estilo de vida colonial, sem muitas mudanças, salvo em alguns aspectos, como a instalação da Academia de Direito, em 1827, cujo contingente de estudantes contribuiu para alteração dos costumes locais. Na segunda metade do século XIX, começam a surgir atividades que denunciam transformações na cidade. Surgem então os novos hotéis, as casas de diversão, o teatro e as atividades intelectuais. Mais mudanças ocorreram a partir da implantação das ferrovias, na década de 1860. Vários hotéis, segundo a pesquisa de Barbuy (2006), foram abertos nas ruas do Triângulo.  Na Rua São Bento havia o Hotel França (esquina com a Rua Direita), o Hotel Palm (no Largo de São Francisco), o Grande Hotel, o Hotel da Paz, o Hotel Provenceau, o Maragliano e o Hotel do Oeste, os dois últimos no Largo São Bento. Dadas a inexistência de água encanada nos edifícios, outros tipos de serviço complementavam essa nova demanda como as casas de banho a "Sereia Paulista", ou "Banhos da Sereia", instalada no Largo de São Bento (Figura 15). É possível citar ainda outras casas comerciais como a de venda de máquinas de Frederico Chulze & Cia e algumas livrarias como a Casa Eclética e a Livraria Paulista, na Rua São Bento.

Com a perspectiva de desenvolvimento que o período oferecia, amplia-se a demanda de infraestrutura e principalmente modos de regular o seu crescimento. Em 1875 foi aprovado o "Código de Posturas da Câmara Municipal de São Paulo". Constituído de definições modestas, por vezes minuciosas, o Código definia regras para as ruas já existentes. No caso da Rua São Bento, o novo texto limitava-se a estabelecer um plano de alinhamento à medida que fossem demolidos os antigos edifícios de taipa e reconstruindo-se novos no local: "Os edifícios que estiverem fora do alinhamento recuarão ou avançarão quando forem reedificados, a fim de se conservarem em linha reta". (Artigo 11).[1]

O ano de implantação do Código de Posturas, 1875, coincide com o ano inicial do recorte temporal dessa pesquisa para levantamento das fontes primárias dos processos de aprovação de projetos no Arquivo Histórico Municipal Washington Luiz.

Confirmando a mudança que vinha acontecendo em São Paulo, os primeiros arquivos levantados se referem à construção de novos edifícios e respectivos pedidos de alinhamento. Este tipo de solicitação é frequente neste período, somando um total de 23 processos, sendo a maioria entre 1885 à 1887 (Figura 9).

Atendendo às exigências do Código de Posturas, alguns pedidos de alinhamentos vinham juntos com notificações de demolições de antigas construções a serem substituídas, o que também sugere a ampliação de ocupação e de mudanças então em curso na Rua São Bento.

No transcorrer da segunda metade do século XIX, com o aumento crescente da população e o consequente risco de epidemias, o abastecimento de água passa a se constituir uma das principais preocupações da administração. Durante muito tempo a oferta pública de água permaneceu limitada a uns poucos chafarizes como o Chafariz da Memória (localizado no atual Largo da Memória) atendidos por valas a céu aberto gravidade de pouca capacidade. A solução só veio mesmo com a constituição da Companhia Cantareira em 1877, por iniciativa de empreendedores privados, aos quais o governo paulista se associou, formando uma sociedade de economia mista. Em 1878, o Imperador Pedro II inaugurou a primeira caixa de abastecimento de água da cidade, na Rua da Consolação. Por essa época, igualmente, foram inaugurados os trabalhos da Companhia Paulista de Eletricidade (5 de dezembro de 1888).

Dentre os documentos levantados nesta pesquisa, foram encontrados 15 processos com pedidos de aberturas de valas em calçamentos para nova ligação de água potável (Figura 10) nos lotes, datando desde 1908 à 1921.
 
Figura 9 - Foto do primeiro processo levantado no Arquivo Histórico Municipal, datado de 22/11/1875.

 
Figura 10 - Foto de processo levantado no Arquivo Histórico Municipal, datado de 05/09/1914.
 

No que se diz respeito às tipologias de construções presentes nesta época, variavam entre uma boa quantidade de casas térreas e sobrados com a existência de alguns estabelecimentos comerciais (Figura 11).
 
Figura 11 - Vista da Rua de São Bento com edificações (1860). Autoria: Militão Augusto de Azevedo.


Com o passar do tempo, os estabelecimentos comerciais gradativamente passam a predominar nas ruas do Centro. Ainda no início do século XX, na Rua São Bento, foram construídos novos sobrados, de uso misto, com andar térreo comercial, para instalação de armazéns, por exemplo, e uso residencial no pavimento superior (Figura 12). Esse tipo de uso conjugado foi predominante até fins do século XIX, avançando ainda pelo início do século XX. Porém a necessidade crescente de lojas mais amplas, armazéns e outros tipos de estabelecimentos levou à ocupação de quase integral dos imóveis para esta finalidade, complementada, todavia pela oferta de conjuntos de escritórios, geralmente situados nos pavimentos superiores. (Figuras 13 e 14).
 
Figura 12 - projeto para construção de um prédio de sobrado, à Rua São Bento nº 36. Autor: Rossi e Berenni. Proprietário: Eleonor de Moura Jordão, em 19/01/1901. Acervo Municipal Washington Luís, fundo "Diretoria de Obras", série "Obras Particulares".
 

Figuras 13 e 14 - projeto para construção de um prédio para comércio e escritórios de 3 pavimentos, à Rua São Bento nº 33.  Proprietário: Luiz Gonzaga da Silva Leme, em 07/02/1908. Acervo Municipal Washington Luís, fundo "Diretoria de Obras", série "Obras Particulares".


Por essa época também era comum a subdivisão dos imóveis comerciais visando o funcionamento de mais de um negócio no mesmo edifício, como é o caso do projeto à Rua São Bento, nº 23B de 1905, com projeto de Samuel das Neves, onde aparecem no andar térreo seis salas comerciais além de escritórios no pavimento superior.

Segundo Barbuy (2006), "para evitar recuos e demolições, proprietários e comerciantes do final do século XIX preferiram fazer reformas literalmente de 'fachadas'. Dentro do que lhes era permitido, [...] promoviam transformação da aparência dos imóveis, adotando estéticas modernizantes, mas sem que houvessem modificações acentuadas nos programas internos de uso [...]".
 

Figura 15 - Colocação de vitrines, à Rua São Bento nº 36. Projeto: Samuel das Neves. Em 04/05/1909. Acervo Municipal Washington Luís, fundo ?Diretoria de Obras?, série ?Obras Particulares?.


Entre a década de 1890 até a de 1920, foram frequentes os pedidos de reformas de fachadas. Os requerentes passaram a modificá-las com a abertura de vitrines, sendo que estes dispositivos inauguram novas formas de exibição de seus produtos (Figura 15). Foram 14 processos com esse tipo de requerimento e 18 que diziam respeito a pedidos de transformação de janelas em portas, alargamentos de outras existentes e troca daquelas de madeira por novas de aço ondulado, uma vez que essas, voltadas para a rua, eram as "portas de entrada" dos estabelecimentos comerciais.

Além das novas vitrines, foram usados outros artifícios para valorização dos imóveis. Moysés Ayoub, por exemplo, comerciante dono de uma "casa de fazendas" no então número 72, da Rua São Bento, solicitou no ano de 1919, a licença para a colocação de uma pedra de mármore na calçada de seu estabelecimento com a seguinte inscrição: "AU PALAIS ROYAL". O pedido foi deferido com a observação de que o serviço não perturbasse o transito local.

O desenvolvimento do comércio em São Paulo na passagem do século XIX para o XX trouxe a mudança de uso do solo no triângulo, em particular ao longo da Rua São Bento. Esta rua passaria a ter vários hotéis, como o Hotel de França, o Sportsman, o Grande Hotel, o Grande Hotel Paulista, Hotel d´Oeste, Hotel Rebecchino, sendo ambos no Largo São Bento. Podemos ainda destacar outros pontos comerciais como: A Botica Veado d´Ouro, a Mappin Store, a Casa Grumbach, Loja da China, Casa Nathan, Loja do Japão, Loja Ao Preço Fixo; estabelecimentos bancários como o Banco São Paulo, o British Bank of S. America Ltda; alguns restaurantes e cafés, como o Café Brandão, o Café União, joalherias como a Casa Fretin, além de terem se instalado nesta rua a Companhia Paulista de Vias Ferreas e Fluviais e a Companhia Paulista de Eletricidade.

A crescente valorização comercial e o aumento da demanda por escritórios dá início ao processo de verticalização da cidade.  Para estimular a construção de edifícios mais altos, mais imponentes e deixar o centro de São Paulo mais próximo dos padrões adotados nas principais capitais do mundo, em 1907 foi promulgada a Lei n. 1011, que concedia isenção de impostos por um período de cinco anos para proprietários que edificassem prédios com mais de dois pavimentos. No entanto, além do número de pavimentos, era preciso também ter a aprovação pela prefeitura das respectivas fachadas, o que levou os proprietários a contratar profissionais especializados como engenheiros e arquitetos proporcionando maior requinte e o aprimoramento dos detalhes e da ornamentação da arquitetura então produzida.

Um exemplo de projeto que se beneficiou dos incentivos concedidos pela Lei n. 1.011, de 1907, foi o do edifício de autoria de Augusto Fried, de 1908, à Rua São Bento nº 21B-21C (Figura 16).

 

Figura 16 - Projeto para construção de um prédio à Rua São Bento nº 21B-21C.  Autor: Augusto Fried. Proprietário: Antônio de Toledo de Lara, em 14/04/1908. Acervo Municipal Washington Luís, fundo "Diretoria de Obras", série "Obras Particulares".


Seguindo esses novos padrões de construção incentivados pela Câmara Municipal, interessada em reurbanizar São Paulo em moldes europeus, é possível observar por volta de 1914-1915 que as ruas principais do centro da cidade apresentavam-se praticamente reconstruídas, tendo passado por uma radical modificação da estética urbana (Figuras 17e 18). Parafraseando Barbuy (2006): "se em São Paulo houve 'três cidades em um século', como mostrou Benedito Lima de Toledo, [...] ao final da década de 1900, estava erigida a segunda delas. O ecletismo vignolesco dominava as fachadas com suas colunas à antiga, os frontões triangulares sobre as janelas e as platibandas retilíneas com pináculos, às vezes encimadas por grupos escultóricos de pretensões monumentais. Eram pontuadas, aqui e ali, por exemplos de um art nouveau pouco arrojado".
 
 
Figuras 17 e 18 - Vistas da Rua São Bento a partir do Largo de São Bento (1884 e 1910 respectivamente). Autoria: Militão Augusto de Azevedo e Guilherme Gaensly respectivamente.

 
O século XIX foi marcado urbanisticamente por diversos planos que vieram dar nova conformação às mais importantes cidades europeias e das Américas. "O século XIX - o longo século XIX, estendido até 1914 - foi, assim, a era de ouro das reurbanizações planejadas. [...] Criava-se um modelo de 'cidade moderna', caracterizada pelas grandes avenidas ordenadoras do tráfego, linhas retas axiais, pela presença de esculturas monumentais e imponentes edifícios públicos, pelos parques e jardins também minuciosamente planejados, entremeando o tecido urbano". (BARBUY, 2006, p. 72).

Em São Paulo, o poder público municipal não deixava de se referenciar nos principais modelos desenvolvidos pelo mundo e também buscava a realização dessa "cidade moderna". Diversas obras de remodelação do centro começaram na administração de Antônio Prado, 1898 a 1911, e prosseguiram no governo de Raymundo Duprat, 1911 a 1914, sendo desta administração o contrato do arquiteto francês Joseph Antoine Bouvard, que havia exercido a função de diretor do Serviço de Arquitetura, Passeios e Plantações da Cidade de Paris.

Ruas do Triângulo tiveram o seu desenho mantido não perdendo os aspectos fundamentais de seu traçado colonial, característica esta que absorveu alterações de fachadas, alinhamentos retilíneos, aberturas de praças e a introdução de infraestruturas decorrentes das intervenções do poder público na cidade durante décadas.

Segundo Barbuy (2006), mais do que se preocupar com soluções de zoneamento e controle para os problemas sociais dos novos aglomerados urbanos, a realização dos planos urbanísticos para a cidade nessa época se deu pela necessidade de sua inserção no sistema capitalista mundial, a fim de fazer de São Paulo - riqueza ascendente e metrópole em formação - uma cidade-capital nos moldes das principais do mundo.

No recorte espacial deste estudo - a Rua São Bento - foram identificadas algumas modificações ao longo de seu eixo, decorrentes dessas obras urbanísticas para o melhoramento do centro.

O mais marcante deles foi a abertura da Praça do Patriarca, na década de 1920. Para isso foi necessária a aprovação da Lei n. 1.473, de 10 de novembro de 1911, que declarou "de utilidade pública diversos prédios necessários para a formação de uma praça, de acordo com o plano Bouvard". Eram os prédios da Rua Direita, n. 38, 40, 40-A, 42, 42-A, 44, 46 e 48; da Rua de São Bento, n. 23 e 25 (Figura 19); da Rua Líbero Badaró, n. 44 e 46; e a parte do prédio à Rua Líbero Badaró, n. 48. A sua demolição deu lugar ao surgimento da praça que, de acordo com os objetivos urbanísticos do plano Bouvard, viria a constituir uma área livre, demarcada por um monumento, a estátua de José Bonifácio de Andrada e Silva, o Patriarca da Independência, cuja vista permitia contemplar o vale do Anhangabaú reurbanizado.

 

Figura 19 - Fachadas dos prédios demolidos na Rua São Bento para a abertura da Praça do Patriarca (1924). O da esquina com a Rua Direita, nº 23 era projeto de Samuel das Neves (1905) e ao seu lado, nº 25, projeto de Neves & Escobar (1905). Acervo Municipal Washington Luís, fundo "Diretoria de Obras", série "Obras Particulares". Ilustração montada pelo autor deste artigo.
 

Podemos observar essa modificação confrontando a Planta da Cidade de São Paulo (1881) com a Planta elaborada pela SARA Brasil S/A (1930) (Figura 21 e 22).

 
Figura 21 e 22 - Pormenores da área desta pesquisa feitos sobre as plantas de 1881 e 1930, respectivamente, indicando a abertura da Praça do Patriarca que se deu em 1924.
 

Prosseguindo ainda no estudo das bases cartográficas, é possível observar a abertura de outra praça, a Praça Antonio Prado, realizada entre 1903 e 1906, no local onde antes havia a Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos e o Largo do Rosário. A igreja dessa irmandade foi transferida para o Largo do Paissandu, permitindo dessa forma a retificação do Largo de São Bento em função da instalação das linhas do bonde elétrico (Figuras 23 e 24).

 
Imagens 23 e 24 - Pormenores da área desta pesquisa feitos sobre as plantas de 1881 e 1930, respectivamente, indicando a abertura da Praça Antônio Prado, podendo observar ainda as linhas do bonde na planta de 1930.


Em 1929 a cidade contava com aproximadamente um milhão de habitantes, a indústria encontrava-se em pleno desenvolvimento, causando alterações significativas no uso do espaço urbano. A verticalização no centro e a ocupação dos subúrbios aumentaram respectivamente o adensamento na região central e a mancha urbana. É nesse contexto que foi executado o primeiro plano viário mais abrangente, proposto pelo Engenheiro Prestes Maia, conhecido como "Projeto Grandes Avenidas". Este plano reforçou a vocação rádio-concêntrica da estrutura urbana paulistana.

Em 1929 foi proposto um novo Código de Obras, por Sylvio Cabral Noronha e Arhur Saboya. Era a Lei municipal n. 3427, de 19 de novembro de 1929. O Ato n. 663, de 10 de agosto de 1934, consolidou o Código de Obras, que ficou conhecido como código Arthur Saboya. O Decreto Lei n. 92, de 2 de maio de 1941, dispunha sobre regulamentação especial para construção na região central paulistana.

Os edifícios existentes na Rua São Bento, hoje, foram em grande parte aprovados de acordo com esse código que estimulava a verticalização no Centro (Figuras 25 e 26). Um exemplo é o Edifício Martinelli (1925 a 1929), com 25 andares e altura de 105 a 130 metros. De concreto armado foi um dos primeiros a romper com a horizontalidade da cidade, abrindo caminho para os arranha-céus do século XX.

Após o registro do SARA Brasil (1930), a próxima base cartográfica da cidade de São Paulo é a planta de 1954, realizada pela VASP - Cruzeiro do Sul. No SARA Brasil contamos 84 lotes na Rua São Bento, no VASP Cruzeiro contam-se 78 lotes, e a rua encontra-se mais verticalizada. Podemos observar algumas modificações fundiárias, como por exemplo, na quadra entre o Largo do Café e a Praça Antônio Prado aconteceram unificações nos lotes (Figura 27).

 
Figura 25 - Panorama da área central de São Paulo (1932). Ed. Martinelli ao canto superior esquerdo. Fonte: imagem publicada em: TOLEDO, Benedito Lima de, São Paulo três cidades em um século. p. 175.
 
 


Figura 26 - Rua São Bento a partir do Largo de São Bento (1943). Aproximadamente 15 anos após o Código de Obras Arthur Saboya, é possível observar a crescente verticalização ocorrida na rua. Ed. Martinelli à direita. Autoria: Benedito J. Duarte.
 
 
Figura 27 - Pormenores da área desta pesquisa feitos sobre as plantas de 1930 e 1954, respectivamente, indicando modificações fundiárias em diversos lotes da Rua São Bento.


Na última planta adotada para o século XX, feita pelo GEGRAN - Grupo Executivo da Grande São Paulo em 1972 - aparecem 72 lotes na Rua São Bento. Também já não observamos mais as linhas do bonde elétrico e vemos o Largo de São Bento representado com curvas de nível o que indica as obras de implantação da estação do Metrô (Figura 28).

 
Figura 28 - Pormenores da área desta pesquisa feitos sobre as plantas de 1972.


A última grande obra que resultou em modificações na configuração espacial da Rua São Bento, mais especificamente no Largo de São Bento, foi a abertura da Companhia do Metropolitano de São Paulo - Metrô. O Largo de São Bento recebeu uma das estações da linha Norte-Sul. Ao receber uma estação do metrô o local sofreu uma grande intervenção urbana, inclusive com a desapropriação de lotes para os acessos do metrô. O lote na esquina do Largo com a Rua São Bento, que vai até a Rua Líbero Badaró, encontra-se vago, mas é de propriedade da empresa.
 

Conclusão

Ao longo desses cinco séculos de existência da cidade de São Paulo, a Rua São Bento passou por diversas transformações: variação, na quantidade de lotes ao longo da rua devido a desmembramentos e unificação ou remembramentos destes, mudanças de tipologia construtiva das casas térreas executadas de taipa de pilão, por sobrados de dois andares até chegar à prédios de concreto armado com maior número de pavimentos; mudança e variação de usos desde as residências, hotéis, escritórios e bancos até o comércio mais popular que lá encontramos hoje.

Foram transformações decorrentes do processo de evolução e crescimento da cidade, ora norteados por interesses e necessidades da população, ora regidos por controle dos órgãos governamentais, por meio de normas como os códigos de postura e de obras que se fizeram cumprir em suas épocas. Hoje a Rua São Bento apresenta exemplares de edificações que pertencem à diferentes épocas.

Como confirma Regina H. V. Santos[2] em sua Dissertação de Mestrado, dos edifícios existentes hoje na Rua São Bento, entre os mais antigos restam apenas três do século XIX e nove da primeira década do século passado. Há apenas um remanescente da década de 1910; oito da década de 1920, e nove da década de 1930. Predominam os edifícios das décadas de 40 e 50, sendo nove e dezessete respectivamente. Existem, finalmente, dois da década de 1960 e oito da de 1970 (Figuras 29, 30, 31, 32 e 33).

 
Figuras 29, 30, 31, 32 e 33 - Fotos do levantamento in loco feitas pelo autor. Os prédios são das seguintes datas, nesta ordem: 1885, 1907, 1930, 1942 e 1955.


Verifica-se, pois, que a Rua São Bento acompanhou o processo de evolução da cidade de São Paulo e com ela foi se adaptando às regras e interesses que balizaram o seu crescimento. Uma rua de extensão relativamente pequena, mas que testemunha toda a trajetória histórica de desenvolvimento urbano da cidade. Apesar de ter suas "fachadas" modificadas adaptando-se à cada época, da cidade de taipa à cidade de concreto, a Rua São Bento como traçado firmou-se como permanência significativa por mais de quatro  séculos.
 

Referências
 
AB'SÁBER, Aziz Nacib. Geomorfologia do sitio urbano de São Paulo. 1ª Edição. Ateliê Editorial, 2007;

BARBUY, Heloisa. A cidade exposição: comércio e Cosmopolitismo em São Paulo, 1860-1914. São Paulo, Edusp, 2006;

Caderno de Fotografia Brasileira: São Paulo 450 anos. São Paulo, Instituto Moreira Salles, 2004.

CAMPOS, Candido Malta. Os Rumos da Cidade: Urbanismo e Modernização em São Paulo.  São Paulo, Editora Senac, 2002.

PORTO, Antônio Rodrigues. História da Cidade de São Paulo Através de suas Ruas: São Paulo: Carthago & Forte, 1996;

REIS FILHO, Nestor Goulart. São Paulo: Vila Cidade metrópole. São Paulo: Ministério da Cultura, 2004;

SANTOS, Regina Helena Vieira, Rua São Bento: um fragmento da cidade de São Paulo que registra as transformações e persistências na paisagem urbana. Dissertação (Mestrado ? Área de Concentração: História e Fundamentos da Arquitetura e do Urbanismo) - FAUUSP. São Paulo, 2008;

São Paulo Antigo - Plantas da Cidade, São Paulo, 1954;

TOLEDO, Benedito Lima de. São Paulo três cidades em um século. 4ª Edição. Cosac & Naify, 2007;
 
 

[1] Código de Posturas da Câmara Municipal da Imperial Cidade de São Paulo (1875).
[2] SANTOS, Regina Helena Vieira, Rua São Bento: um fragmento da cidade de São Paulo que registra as transformações e persistências na paisagem urbana. Dissertação (Mestrado ? Área de Concentração: História e Fundamentos da Arquitetura e do Urbanismo) - FAUUSP. São Paulo, 2008.



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