ARTHUR NOGUEIRA: O PRÉDIO POR TRÁS DO EDIFÍCIO ESTHER
Silvia Ferreira Santos Wolff & Cecília Rodrigues dos Santos
UPM, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo Mackenzie; Universidade Presbiteriana Mackenzie,Brasil
1153211@mackenzie,br & ceciliahelena.santos@mackenzie.
Bruno Falanghe
Voluntário do Grupo de Pesquisa (CHSP)- Centro Histórico de São Paulo – Universidade Presbiteriana Mackenzie
bfalanghe@gmail.com
Introdução
Esta pesquisa insere-se no conjunto de produções que buscam compreender a introdução da arquitetura moderna na cidade de São Paulo por meio do estudo de edificações pioneiras no processo de verticalização de sua área central. Seu conteúdo vincula-se às investigações do grupo de pesquisa “Construção da Cidade, Arquitetura e Crítica” da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie, no projeto “Arquitetura Moderna no Centro de São Paulo” em desenvolvimento com apoio do CNPQ. O trabalho tem como corpus documental os processos de aprovação pela Prefeitura Municipal de São Paulo de projetos arquitetônicos nessa região da cidade. Área que foi impactada por intensa atividade de renovação das construções a partir da década de 1920.
Os estudos do Grupo de Pesquisa confrontam projetos e memoriais descritivos localizados no Arquivo Municipal Washigton Luís com outras fontes documentais, e com a produção bibliográfica existente sobre o período que trata da verticalização do Centro Histórico de São Paulo. As análises decorrentes desse escrutínio de originais que vem sendo realizado pelo Grupo de Pesquisa, têm possibilitado apresentar os projetos originais de prédios anteriormente não estudados e matizar, ou mesmo revisar, narrativas consagradas pela história da arquitetura moderna paulistana. Também tem sido possível ampliar o conhecimento e reavaliar aspectos da produção tanto de arquitetos renomados, como Oscar Niemeyer, como de outros menos reconhecidos. E ainda, rever “generalizações” sobre aspectos canônicos da arquitetura moderna, ou “depreciações” sobre a produção de matriz tradicionalista que a antecedeu. Ou mesmo, entrar em contato com aspectos inovadores relativos a materiais e técnicas construtivas empregados em edificações do século XX no centro de São Paulo, até pouco vistas apenas como ecléticas ou passadistas.
O Grupo de Pesquisa tem como objetivo aprofundar o conhecimento sobre exemplares de excepcional qualidade construtiva e arquitetônica, muitos deles ainda não reconhecidos. Visa também contribuir para a construção de políticas públicas e iniciativas privadas que tratem desse conjunto de edifícios com propostas de preservação, com projetos de novas formas de ocupação de espaços ociosos, subaproveitados, ou em mau estado de conservação, portanto inadequados para atender demandas contemporâneas de utilização.
A região central já foi a área principal das atividades culturais e de serviço de São Paulo, além de território das primeiras construções verticais da cidade nas primeiras décadas do século XX. Perdeu este protagonismo, a partir dos anos 1970, fruto das intensas alterações produzidas por dinâmicas urbanas diversificadas. Hoje, o aproveitamento dessas estruturas remanescentes é deficiente, a despeito de frequentes investimentos públicos e privados na área.
Apesar de juízos que tratam o centro de São Paulo como área esvaziada não serem precisos, é verdade que se acumulam problemas desafiadores na região. Questões que impulsionam iniciativas esporádicas, sem resultados efetivos e duradouros. Há pontos de insegurança, desagregação e sujeira na área central. Houve nas últimas décadas do século passado progressiva migração para outras regiões da cidade dos moradores de classe média, da elite e de significativa parte dos serviços que aí se concentravam.
Coexistem no local, desorganizadamente, problemas de zeladoria urbana; déficits de moradia social; excesso de habitações precárias; investimentos públicos e institucionais em novos equipamentos culturais e prédios subutilizados e/ou defasados em termos de distribuição funcional e de instalações prediais. Ao mesmo tempo, é a região da cidade dotada da melhor infraestrutura urbana que tem, por exemplo, rede de transporte público que se conecta com todas as regiões da metrópole.
O Centro de São Paulo vem recebendo novos empreendimentos imobiliários que ainda se valem do legado remanescente do passado de maior protagonismo. Esses empreendimentos pontuais somam-se a intermitentes investimentos públicos que visam se contrapor aos processos de empobrecimento da região. Iniciativas pouco articuladas entre si e que, não tem obtido resultados. Embora cada vez mais se reconheça que nessa área se concentram prédios de muita qualidade e grande potencial, que inclusive poderiam contribuir para a recuperação urbana. O certo é que há muito a planejar para uma ordenação plena de espaço com tão rico acervo.
A contribuição oferecida pela pesquisa para tão complexa problemática é o aprofundamento do conhecimento sobre as edificações que configuraram historicamente o local, aqui representada, pelo estudo do Edifício Arthur Nogueira, parte do empreendimento que notabilizou o afamado Edifício Esther, pioneiro da arquitetura moderna brasileira.
O Edifício Arthur Nogueira é raramente citado na crônica e na historiografia da arquitetura, como parte integrante da concepção do edifício Esther (1936-1938), com exceção do trabalho de Marcos Carrilho de 1999. É objetivo deste trabalho olhar mais detalhadamente para a relação entre os dois edifícios, Esther e Arthur Nogueira, explorar as semelhanças, diferenças e os aspectos simbióticos da convivência de suas soluções.
Análises realizadas aprofundando a pesquisa sobre o empreendimento que reuniu os dois prédios, através do exame dos projetos originais aprovados, da leitura dos memoriais descritivos e da revisão da produção bibliográfica existente sobre o edifício Esther. Vale mais uma vez ressaltar que não há referências anteriores que tenham se detido no exame do Arthur Nogueira, cujo papel secundário, já presente na bibliografia de arquitetura, é também verificado no exame da documentação a respeito dos dois edifícios. Há diferenças nas fotografias de época, nos projetos originais, no texto dos respectivos memoriais, nas dimensões, nos materiais de acabamento e áreas comuns das unidades de ambos os prédios.
1. A concepção conjunta dos edifícios Esther e Arthur Nogueira
O conjunto é vinculado à Praça da República, logradouro que até o início do século XX era periférico ao núcleo original da cidade, mas que aos poucos tornou-se ponto focal e valorizado do chamado Centro Novo de São Paulo.
A origem do Edifício Esther no começo dos anos 1930 é ligada ao empresário Paulo de Almeida Nogueira, superintendente e sócio da Usina Açucareira Esther, de Cosmópolis, no interior de São Paulo. Empreendedor membro de família que vinha diversificando as formas de negociar desde o final do século XIX. As atividades do grupo passaram por ações vinculadas à colonização, empresas férreas, bancos, fazendas de café e usinas de açúcar. O empresário percebeu a oportunidade da realização de negócios imobiliários na promissora área central de São Paulo do início do século XX. E foi pioneiro ao patrocinar um concurso que ideou o edifício que se tornou ícone da arquitetura moderna brasileira, o Edifício Esther (Atique, 2004).
O concurso de arquitetura proposto por Paulo Nogueira visava o projeto de um edifício que abrigasse a sede da Usina açucareira, empresa primordial do grupo, ainda que englobasse mais diversificado programa com fins de obtenção de renda. Foi vencido por dois jovens arquitetos Álvaro Vital Brazil (1909-1997) e Adhemar Marinho. O arquiteto Hugo Segawa entrevistou Álvaro Vital Brazil:
“O convívio familiar com um dos principais cientistas da primeira metade do século XX em muito deve ter marcado o raciocínio lógico e metódico de Álvaro Vital Brazil, que ainda criança recebia aulas de desenho ministradas por Augusto Esteves, auxiliar de seu pai e funcionário do Butantã responsável pelas observações gráficas e de modelação científica do instituto. Tal adestramento lhe foi útil quando passou a frequentar a Escola Nacional de Belas-Artes do Rio de Janeiro, onde se formou arquiteto em 1933. Mas, simultaneamente, Vital Brazil atendeu também ao curso de engenharia da Politécnica, conferindo-lhe a dupla qualificação de engenheiro e arquiteto, uma rara combinação entre aqueles formados no Rio no período, administrando a dimensão técnica da arquitetura em síntese com a inspiração artística, alimentada pela informação internacional modernista que lhe chegava às mãos mediante revistas estrangeiras e livros – e com especial ênfase à leitura de Le Corbusier. Essa alquimia resultou num arquiteto de comportamento e produção bastante peculiares: embora carioca de atuação, conviveu muito pouco com a chamada “escola carioca” liderada por Lúcio Costa, compartilhando apenas o ideário comum focalizado em Le Corbusier. Cioso do rigor construtivo, sua obra pautou-se por um cuidadoso dimensionamento técnico: do apuro do pormenor aos limites do orçamento, sem prejuízo da funcionalidade e da plástica e firmemente assentada na convicção por uma arquitetura moderna. O Edifício Esther é um exemplo eloquente: Vital Brazil e Adhemar Marinho ganharam uma concorrência para o projeto do prédio apresentando um estudo e um caderno de orçamento, “uma grande pasta discriminando os custos de sua construção conforme o projeto”, como me observou o arquiteto. Contratado para o desenvolvimento do projeto e acompanhamento da obra, Vital Brazil realizou malabarismos para assegurar a reconhecida qualidade arquitetônica do Esther nos limites do orçamento calculado, permitindo-se soluções inovadoras como a estrutura independente, janelas corridas, terraço-jardim e uma fachada de vitrolite preto [...].” (Segawa, 1987, p 59-64)
A concepção do Edifício Esther, sintonizada com as vanguardas internacionais de arquitetura, incorporava os preceitos dos cinco pontos de arquitetura propostos por Le Corbusier. O impacto que causou do Edifício Esther à época de sua inauguração é relatado por Henrique Mindlin:
“
É difícil imaginar hoje, passados mais de quarenta anos, o que foi, em São Paulo, o “estouro” da inauguração do Edifício Esther. Em um meio mal-e-mal preparado por algumas residências de Warchavchik, Flavio de Carvalho e Rino Levi, surgia de repente, com todo o prestígio de uma realização de grande porte, um imponente edifício de lojas, escritórios e apartamentos, no melhor ponto da cidade, com aspecto totalmente diverso daquele a que o paulista estava habituado” (Brazil, 1986, p.5).
Fig.01. Edifício Arthur Nogueira atrás do Esther, ambos se destacando por altura e linguagem do entorno existente à época de sua inauguração. O contraste com a casa em primeiro plano ilustra o processo de verticalização. Fonte: (Reprodução Arquivo Arq).
A imagem da década de 1940 (Fig.1) corrobora essa narrativa pois se verifica, em primeiro plano, o contraste entre o conjunto da nova edificação modernista, Esther, e do edifício Arthur Nogueira, aqui estudado, com a construção na avenida São Luís, à direita, à frente. Residência de elite, remanescente da antiga ocupação desta via, cujas transformações já foram estudadas com minúcia (Lefèvre, 2006).
Fig. 02 A localização do terreno em que foram construídos os Edifícios Esther e Arthur Nogueira. Fonte: (Mapa Sara Brasil:51, disponível em Geosampa, portal online da Prefeitura Municipal de São Paulo, 1930).
Fig. 03. Em destaque a implantação dos dois edifícios separados pela rua criada. À frente do Edifício Esther, a Praça da República e a Escola Caetano de Campos e à direita destaca-se a forma peculiar do posterior Edifício Copan de Oscar Niemeyer em uma área em acelerado processo de verticalização. Fonte: (Geoportal, 1958).
Cerca de vinte anos depois do pioneirismo do conjunto dos edifícios Esther e Arthur Nogueira e das experiências de compartilhamento funcional e de tipologias de unidades habitacionais, de serviço e comerciais que ali se promoveram, o centro de São Paulo estava pleno de edificações verticais. A vizinha rua São Luís também estava transformada em avenida, ocupada por prédios que substituíram os antigos casarões que haviam conformado o local, conforme explora José Eduardo Lefèvre em seu alentado estudo sobre essa via. (Lefèvre, 2006).
As inovações introduzidas pelo Edifício Esther foram muitas. Visando amenizar os gastos com a construção de sua sede empresarial no centro de São Paulo, os Nogueira solicitaram unidades habitacionais destinadas ao aluguel. O que foi distribuído nos sete pavimentos superiores em 64 apartamentos de diferentes tipologias. Além desse uso, o térreo do prédio destinou-se ao uso comercial, e os quatro primeiros pavimentos a escritórios e consultórios médicos.
A própria utilização do terreno era revolucionária ao subdividir o terreno em dois lotes, com a introdução de uma via pública. Estratégia que, com as fachadas dos dois edifícios, ampliou as faces públicas do empreendimento.
“Em primeiro lugar, chama a atenção o fato de se tratar de uma solução que na origem de sua formulação, não é apenas arquitetônica, mas urbanística. A despeito do que se possa comentar a propósito das vantagens que levaram a esta opção, o fato significativo é que o edifício foi concebido como volume inteiramente livre, tendo suas quatro faces tratadas com a mesma relevância. Em segundo lugar, o programa atendido contempla um universo diversificado de atividades, onde estão presentes habitações diferenciadas, conjuntos de escritórios, lojas comerciais, três restaurantes, garagem e áreas de apoio. Alguém já sugeriu que são vários edifícios em um só. De fato, além da reunião de várias atividades distintas, o uso residencial contempla sete tipos residenciais distintos, da habitação mínima ao apartamento duplex na cobertura. A concepção visava nas palavras do arquiteto, ‘o máximo de elasticidade interna para serem possíveis modificações de tipos de apartamentos, assim como sucessiva transformação em escritórios’.” (Carrilho, 1999, n.p).
Fig. 04. Prancha do Projeto original com a subdivisão do terreno em dois lotes separados por rua criada e tornada pública e implantação dos dois edifícios. Fonte: (São Paulo (Prefeitura) Processo 21 662 -36, relativo ao Edifício Ester, formado em 31/01/1936,1936).
A solução empregada, bastante criativa, usou expediente semelhante ao da Rua Marconi, via que vantajosamente potencializou a compartimentação de um terreno comprido em vários lotes com frente para uma nova rua criada (Carrilho et al., 2021).
Fig. 05. Rua Marconi, caso análogo aos Ed. Esther e Arthur Nogueira em que o terreno original foi loteado, acomodando uma via no seu eixo central. Neste caso com os edifícios compactamente alinhados em duas faixas, ao invés do bloco isolado do Ed. Esther. Fonte: (Bruno Falanghe para CHSP).
Fig. 06. Vista aérea (s.d.). No ângulo da Praça da República a relação entre os dois edifícios. Fonte: (Reprodução SkyScrapercity).
Eram novidade o modo como a construção implantou-se no terreno, como otimizou a ocupação, e consequentemente os ganhos com programa diversificado, mas também a forma como criou boas condições de insolação e distribuição dos espaços.
A solução de criar uma rua relegou o restante do terreno irregular a um papel secundário do ponto de vista da concepção geral do conjunto dos dois prédios, mas com possibilidades de maior exploração comercial e ganhos, como disseram os arquitetos. A rua pública foi permutada pelo uso pleno de seu subsolo e o terreno obtido pela fragmentação permitiu a construção de mais um prédio de mesma altura.
Nesse sentido vale transcrever trechos do memorial escrito pelos arquitetos Vital Brazil e Adhemar Marinho e publicado por ocasião do lançamento do Edifício Esther. Aí ficam claros os propósitos e vantagens da visão que dividiu o terreno e a ênfase dos investimentos e ideação nesse prédio e o consequente papel secundário do Arthur Nogueira.
“As principais vantagens foram:
Construir um Edifício dentro do programa orçamentário, completamente circundado por ruas públicas e sem ‘áreas internas’.
[...]
A companhia proprietária teria toda a liberdade com relação ao terreno restante (grifo nosso) que ficaria muito valorizado pela abertura da nova rua.
Observação: Salientamos que, apesar de termos projetado a rua e assim obrigado a proprietária a ceder a mesma à Municipalidade, pudemos por um entendimento recíproco, aproveitar todo o subleito da mesma para aumento da garagem do Edifício.” (A.R.N. Sociedade Construtora LTDA., 1938, n.p.).
Fig. 07. Implantação e pavimento térreo de ambos os edifícios. Fonte: (Bruno Falanghe, colaboração Amanda Divietro e Henrique Bartolino).
Fig. 08. Implantação e pavimento térreo de ambos os edifícios e o perfil original do terreno. Fonte: (Autoria Bruno Falanghe, colaboração Amanda Divietro e Henrique Bartolino).
No Edifício Esther a modulação que rege a organização da planta geral adequa-se aos princípios do primeiro modernismo e é compatível com a fração do terreno obtida. Já no Arthur Nogueira, sem perder-se a essência da modulação, há necessidade de adaptação da grelha pelas circunstâncias impostas pela forma do “resto” do lote que ocupou.
A implantação do conjunto, subdividindo o terreno original em dois lotes separados por uma rua criada, possibilitou ao Esther, protagonista do conjunto, a composição de um objeto arquitetônico único, isolado, com tratamento plástico meticuloso. Ao qual, contudo, o prédio secundário, Arthur Nogueira, coordenava-se. As linhas geometrizadas e com diferenciação cromática que marcam horizontalmente a divisão dos andares de ambos os edifícios amenizam visualmente a verticalidade da altura da composição que, de todo modo, no caso do Esther, é um prisma com volume final com acento alongado. Um conjunto com dois arranha-céus, como passavam a chamar-se os prédios novos que se diferenciavam das residências térreas tradicionais do entorno. Prédios altos que aos poucos iriam crescer ainda mais e dominar a paisagem paulistana, o que se prenuncia ao fundo da imagem aérea do centro novo no período de sua implantação. (Fig.01).
A criação de uma rua projetada atendeu assim a uma intenção dos arquitetos de conceber um projeto que, ao menos no principal, Esther, se alinhasse com perspectivas da arquitetura moderna, no sentido de criarem volumes como objetos isolados. Nesse prédio as propostas vanguardistas de Le Corbusier, e seus cinco pontos se concretizaram (Carrilho, 1999). Além desses aspectos, a construção em técnica do concreto, com estrutura modulada e o pavimento térreo com acesso pelas quatro ruas foram aspectos também inovadores.
A ampla e progressiva aceitação que o Esther, a primeira e principal edificação, obteve de algum modo contribuiu para a pouca atenção dada – pela crítica de arquitetura - ao Arthur Nogueira, ou “Estherzinha”, como as vezes é chamado.
E não foi pequena a aceitação. A própria classe dos arquitetos instalou inicialmente a primeira sede de seu recém-criado instituto no subsolo do novo edifício Esther. Artistas e membros da elite intelectual e social de São Paulo passaram a frequentar o prédio; ali residir ou sediar seus escritórios e consultórios. Como o artista plástico Di Cavalcanti e o colunista social, Marcelino de Carvalho, que se instalou na cobertura do edifício. A então famosa e inovadora casa noturna, boate Oásis, também funcionou no edifício. A aparência vanguardista, avalizada pela alta roda que o frequentava, contribuiu para a aura de modernização que, de resto, fazia parte do processo que acontecia nesta região do chamado centro novo de São Paulo como um todo (Atique, 2004).
1.1. O desenvolvimento dos projetos dos edifícios Arthur Nogueira e Esther
O processo de aprovação do Esther pelo município tem data inicial em janeiro de 1936. As assinaturas de autoria nas pranchas de aprovação do segundo prédio, Arthur Nogueira, em 1937 parecem versões simplificadas das feitas por extenso no projeto do Esther. Talvez o mesmo espírito de economia e maior simplicidade possa ser dito com relação à composição do edifício mais novo.
Fig.09. Carimbo de aprovação em prancha do projeto do Edifício Arthur Nogueira. Fonte: (São Paulo (Prefeitura). Processo 27295-37).
A área total do Arthur Nogueira é menor do que a do Esther, respectivamente cerca de 566 e 750 m². A plástica do conjunto é pautada por linhas que relacionam os dois edifícios entre si de modo conjugado. O conjunto está implantado no perímetro estabelecido pela Avenida Ipiranga (frente), Ruas Sete de Abril e Basílio da Gama (laterais) e Rua Gabus Mendes (fundo).
Seu programa previu um térreo para uso comercial, como no Esther, e um subsolo para depósito e reservatório e ainda, uma cobertura com casa de máquinas e caixas d´água cercados por terraços. Os andares originalmente foram propostos apenas para uso residencial. Do primeiro ao terceiro pavimento distribuíram oito unidades distintas e do quarto ao décimo pavimento, quatro outros modelos de apartamento, descritos no memorial como segue abaixo. (Fig. 10).
“[...] oito modelos diversos de apartamento [...] sem repetição; invariavelmente apartamentos de 1 cômodo, com vestíbulo e banheiro.” [...] “...4 modelos de apartamento, conectados ao elevador por hall privativo, mais um elevador com escada servindo todas as unidades pela circulação de serviço com um banheiro de uso comum; sendo os apartamentos: o primeiro composto por sala, cozinha com despensa, tanque e banheiro de serviço, 3 quartos (1 abrindo para a sala e 2 conectados por passagem) banheiro e varanda compartilhada por sala e quarto; o segundo por vestíbulo, sala, passagem conectando banheiro, cozinha com despensa, e dois quartos; o terceiro vestíbulo, sala , passagem conectando banheiro, cozinha e dois quartos; o terceiro vestíbulo, sala, passagem conectando banheiro, cozinha e dois quartos e finalmente um apartamento que acompanha a curva do edifício, composto por vestíbulo, 2 salas conectadas, cozinha com despensa e uma passagem que conecta 2 quartos em curva com um único banheiro triangular.” (São Paulo (Prefeitura), 1937, n.p.)
Fig. 10. Pavimentos do Edifício Arthur Nogueira. Fonte: (Autoria Bruno Falanghe, colaboração Amanda Divietro e Henrique Bartolino.).
Ainda que de boas dimensões para os padrões atuais, desde a distribuição do espaço, até o detalhamento o Arthur Nogueira situa-se num patamar mais econômico que o Esther. Há que se destacar aspectos do programa como a circulação aberta e a existência de banheiro coletivo. Contudo, o exame demorado da aparência do Arthur Nogueira indica que, embora mais simplificado, não deveria comprometer a paisagem em sua relação com a edificação protagonista do empreendimento. É interessante ver as linhas de compatibilização entre os dois edifícios cujas marcas de separação entre os andares se alinham. (Fig. 06 e 07).
Internamente também o prédio Arthur Nogueira é mais essencial do que o Edifício Esther. É certo que o terreno irregular, as tipologias dos apartamentos e a circulação de serviço aberta para um poço revelam cuidado formal e fatura mais econômica, como referido. Contudo, não se perde o rigor nas composições e nos detalhes geometrizados, formas que compõem a estética do conjunto como um todo.
1.2. Semelhanças e diferenças entre os edifícios Arthur Nogueira e Esther
O papel subsidiário do Arthur Nogueira, em relação ao Esther, é reafirmado em vários aspectos no exame da documentação original dos dois edifícios. O Esther era o foco. Noção presente no título com que o projeto foi apresentado para aprovação pelo Município em 19 de março de 1937, cerca de um ano depois do protocolo do Esther que era “Projecto para a construção de um prédio de apartamentos sito a rua 7 de abril junto ao prédio 77 (grifo nosso), Propriedade da Usina Esther Ltda.”. Esse é o título que consta das pranchas originais do processo de aprovação constituído em 24 de junho de1937. Cerca de um ano e meio após a constituição do relativo ao Edifício Esther, formado em 31 de janeiro de 1936. (São Paulo (Município). P. 27295-37, s.p.; São Paulo (Município). P. processo 21 662 -36, s.p.).
O foco, o projeto, a divulgação e o maior investimento foram para o Esther, inclusive no sentido de conseguir que fosse um volume isolado, regular, com quatro fachadas que recebiam insolação e tratamento formal detalhado em todas as faces. Sendo que a fachada principal fazia frente para a Praça da República, antigo espaço público que vivia processo de valorização progressiva após urbanizações empreendidas pelo poder público no início do século.
Fig. 11. Edifício Esther com Edifício Arthur Nogueira ao fundo, ainda em construção. Fonte: (Revista Acrópole, 1938).
Já o Arthur Nogueira tinha três fachadas voltadas para o exterior e uma para o alinhamento do lote contíguo. Houve afastamentos em parte desse alinhamento de divisa, com previsão para poços, caso tivesse ocorrido a verticalização desse outro lote. Interessante notar que a despeito de recuos em relação ao terreno vizinho aos fundos, o que criaria uma espécie de poço; esse terreno não passou por processo de verticalização até a década de 2020, quase cem anos após a construção do Arthur Nogueira. (Fig. 10).
A irregularidade do terreno e a face de divisa com outros cujo destino não se poderia controlar foram evitados no projeto do Esther. E minimizados por meio da concepção e de recursos formais no terreno que sobrou para o Arthur Nogueira. O cuidado na relação com o restante do entorno também se dá, nas faces em que foi possível controlar do Arthur Nogueira. Nas três fachadas voltadas para as ruas, a composição dá continuidade às linhas do Esther e condiciona-se às irregularidades do terreno nele se acomodando. A marquise curva cobre o passeio e se adequa ao desenho do traçado (Fig.11, 12 e 13). Na divisão com o lote vizinho, o Arthur Nogueira volta-se para o restante da quadra e convida continuidades, um complemento edificado que ainda não ocorreu (Fig.16). Fica evidente o protagonismo do Esther e o esforço compositivo de relacionar as fachadas dos dois prédios entre si e, ainda, a consciência da paisagem em transformação em que se o conjunto se inseria.
Contudo, embora as fachadas do Arthur Nogueira repitam os elementos de tratamento do Edifício Esther, nos limites de um papel coadjuvante, elas também adquirem personalidade própria, ao formularem uma resposta para a continuidade da morfologia da quadra que se define a partir delas. E são resolvidas em suas extremidades de formas distintas. De um lado, dão continuidade à superfície contínua na esquina da Basílio Machado. No lado oposto, em contraste, interrompem a sequência das linhas horizontais, com as varandas com o fundo opaco da parede em segundo plano, proporcionando a transição para a face da Rua 7 de Abril.
Fig.12. Composição de estudos das fachadas do Edifício Arthur Nogueira, cuja principal era voltada para a dos fundos do Esther. As linhas dominantes dos dois edifícios estão alinhadas ( ver fotografias 13 e 14). Fonte: (Desenho Amanda Divietro a partir do projeto original apresentado para aprovação municipal).
Fig.13. Composição integrada entre os dois prédios. As linhas simplificadas de demarcação dos pavimentos do Arthur Nogueira coordenam-se às do Edifício Esther, no qual o tratamento plástico das fachadas é mais elaborado. Fonte: (Autoria Bruno Falanghe).
Fig. 14. Vista dos dois prédios e da rua projetada – à esquerda o Artur Nogueira. O térreo comercial. Fonte: (Autor).
Fig. 15. O cuidado na finalização da esquina, e o corte no alinhamento do terreno vizinho no Edifício Arthur Nogueira. Fonte: (Autor).
Fig. 16. O cuidado na finalização da esquina e a empena cega do Arthur Nogueira, ainda hoje não oculta pois o lote contíguo permaneceu não verticalizado. Fonte: (Marcos Carrilho).
2. O conjunto no presente - dificuldades de atualização e de manutenção
Vistoria a uma das unidades do Edifício Arthur Nogueira identificou internamente o mesmo princípio estético do Esther, embora de modo mais simplificado, como já referido. Caixilhos de ferro, pisos com tacos de madeira e granilite, espelhos dos marcadores de andares têm basicamente os mesmos desenhos geometrizados. No Arthur Nogueira de modo geral os componentes e materiais originais estão preservados. Há alteração e substituição de aspectos e detalhes de acabamento, mas todos são passíveis de recuperação e, também, de atualização para demandas contemporâneas.
Mesmo o Edifício Esther, mais valorizado, ainda hoje tem uma utilização e um reconhecimento muito aquém de sua qualidade e importância cultural. A despeito de tentativas de implantação, por exemplo, de estabelecimentos comerciais sofisticados. Funcionou recentemente uma padaria no térreo do edifício e um restaurante na cobertura. Dos dois espaços sobrevive apenas o restaurante localizado no topo do prédio. Apartado da rua, e com circulação direta, o que o sistema original de elevadores possibilitou, vem se mantendo. O fracasso da padaria ao rés do chão diz respeito seguramente às dificuldades que o centro da cidade oferece hoje para atrair consumidores, em face aos referidos problemas de zeladoria e miséria urbana.
Além desse aspecto, as questões inerentes à atualização e conservação de atributos do Esther passam por dificuldades ligadas à gestão do prédio e provimento orçamentário. A pesquisa entrevistou em 17 de novembro de 2022 o arquiteto Eduardo Colonelli que, contratado pelo condomínio, executou plano de conservação e atualização da edificação há cerca de vinte anos. Seu plano, segundo relatou, propôs essencialmente rever a circulação alinhando as prumadas verticais de escadas e elevadores, conforme legislação atual e rever sistema elétrico e, ainda, introduzir sistema unificado de ar-condicionado.
Visou ainda soluções para custeio das intervenções com verbas por isenção de impostos em leis de incentivo por meio de reconhecimento como patrimônio de interesse público. O plano oferecia como contrapartida a destinação do subsolo do edifício para a criação de centro cultural em que se divulgasse o papel da edificação na história da arquitetura e do centro de São Paulo. Caso a questão progredisse havia perspectivas de realizar a restauração do prédio. Porém, nada do proposto efetivou-se até hoje. A possibilidade desse tipo de atualização de edificações antigas com muitos diferentes proprietários reunidos em condomínio se efetivar tem se mostrado muito improvável. As operações econômicas que têm caracterizado o impulsionamento de obras de retrofit no centro de São Paulo contam com significativos incentivos públicos para propriedades concentradas por empreendedores, não por condôminos. E não visam necessariamente restaurações.
No caso do Arthur Nogueira o desafio seria ainda maior, dado que o edifício não detém o apelo de potencial midiático do Esther. Os desafios permanecem, mas esperamos que a documentação desse prédio, que organizadamente fará parte de Banco de Dados eletrônico em construção pelo grupo de pesquisa, venha a contribuir para o desenvolvimento de estratégias que contemplem a valorização dessas edificações.
3. Considerações finais
O estudo desse prédio, Edifício Arthur Nogueira, sempre considerado à luz daquele que o originou, o Edifício Esther, tem o potencial de exemplificar o caráter modelar de algumas soluções projetuais esquecidas e de apontar para possibilidades de se criar políticas de recuperação e utilização plena de edificações da área central.
A documentação original aponta aspectos experimentais presentes na primeira fase da arquitetura vertical de São Paulo. É o caso do compartilhamento de usos em uma mesma construção. Prática progressivamente abandonada na cidade até pouco. São Paulo, nas décadas recentes, tem edifícios exclusivos para moradia, para escritórios e/ou consultórios e galerias de compras. Vale observar que, no passado, foi possível outra forma de ocupação e convivência urbana.
O estudo da alternativa de coexistência de diversos usos sob o mesmo teto, como nos edifícios aqui estudados, pode trazer subsídios para soluções contemporâneas. Do mesmo modo, o cuidado compositivo empreendido na elaboração das fachadas com variações cromáticas e de materiais de acabamento e linhas coordenadas definindo, cheios e vazios, e planos e reentrâncias também traz lições a serem lembradas. Vale ainda destacar que o Edifício Esther, um objeto isolado que se impôs na paisagem que ajudou a transformar, e depois o Arthur Nogueira, concebido de modo complementar, não negaram a relação com o ambiente e a cidade ao seu redor.
As possibilidades desses edifícios serem utilizados mais intensamente, ou de serem modelos a inspirarem novas soluções contemporâneas ficam muito claras. Por este motivo, iniciativas para potencialização de seu uso devem, necessariamente, passar por levantamentos minuciosos a fim de restaurar aspectos construtivos e detalhes relevantes, e atualizar, com ponderação o que for necessário para uso contemporâneo. Para tal, a documentação, já reunida pelo Grupo de Pesquisa, será importante.
Por outro lado, as questões relativas especificamente a adaptação e recuperação plena da qualidade desses edifícios para o momento atual e futuro é cercado de complexidades, como apontado. Fica patente a necessidade de políticas públicas de apoio aos condomínios que não poderão arcar isoladamente com os custos de renovação, manutenção, recuperação e restauro de estruturas e componentes.
E ainda, o incentivo à utilização plena e recuperação de valor passa por questões externas às edificações e ao conjunto. O desafio de buscar alternativas para revalorizar o centro de São Paulo e atrair usos compartilhados e cidadãos que não se amedrontem depende de soluções ainda não encontradas, apesar de intermitentes ações públicas ou privadas na área.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS
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