Introdução
Na primeira metade do século XX, o centro de São Paulo conheceu um intenso desenvolvimento imobiliário, responsável pela alteração da feição característica da cidade de origem colonial. Esta transformação ocorreu pela substituição quase integral das edificações tradicionais que compunham o perfil dominante da vila fundada no século XVI, cujas condições persistiram pouco alteradas até a segunda metade do século XIX. Apesar dos novos padrões construtivos, tecnológicos e de alta densidade, as características das novas construções não podem ser adequadamente compreendidas sem a consideração dos condicionamentos impostos pela estrutura urbana do núcleo original. Assim, se o primitivo conjunto edificado foi substituído, as novas edificações foram realizadas sobre o traçado urbano pré-existente, condicionado pelo parcelamento fundiário herdado do passado e subordinado a um regramento normativo que guarda relações com as formas tradicionais de ocupação dos lotes.
Da mesma forma, é necessário considerar que tais transformações se realizaram sob o efeito da transição da pequena vila para a cidade cosmopolita, em um primeiro momento, e para a metrópole paulistana da década de 1950. Esse largo espectro de mudanças, ainda que assinalado de forma esquemática, não pode ser tratado sem as referências às notáveis transformações do sistema de circulação de passageiros e de cargas, promovidos pela implantação da ferrovia e, no meio urbano, pela rede de bondes sobre trilhos. A economia, por sua vez, encontrava-se em intenso desenvolvimento, seja no setor agroexportador, seja em consequência do desenvolvimento industrial, cuja produção superaria a partir da década de 1920 o volume da produção agrícola. O crescimento da população era intenso, chegando a dobrar a intervalos de 15 a 20 anos. A cidade de 26.000 habitantes em 1872 atingiria 239.820 habitantes em 1900, alcançando 2.198.000 habitantes em 1950. Grande parte desse aumento era devido ao ingresso de imigrantes de origem europeia.
Este quadro geraria enorme impacto urbano, impondo ao poder público a necessidade do desenvolvimento de ações em resposta às crescentes demandas de circulação e infraestrutura, lançando as bases das primeiras iniciativas de controle e planejamento. Sobre a região contida no sítio da antiga Vila de São Paulo se estabeleceria o centro de negócios da cidade, expandindo sua extensão, gradativamente, em direção Oeste, por meio da transposição do Vale do Anhangabaú, dando origem ao chamado Centro Novo. Uma das propostas pioneiras visando enfrentar o crescente congestionamento da área central foi a criação de um anel de circulação pelas bordas da colina histórica. Inicialmente formulado por Victor Freire, este projeto sofreria modificações de autoria de Samuel das Neves, revistas pela mediação do urbanista francês Joseph Bouvard até alcançar a sua versão final, contemplando ainda a sugestão da urbanização dos vales dos rios Tamanduateí e Anhangabaú por meio da criação de parques.
Consideráveis avanços técnicos foram desenvolvidos concomitantemente a estas transformações. É possível encontrar nos jornais das primeiras décadas anúncios de arquitetos e construtores que incluem entre suas especialidades a execução de estruturas de concreto armado. Desde 1912, a Escola Politécnica oferecia um curso de concreto armado ministrado pelo professor Paula Souza. São frequentes também anúncios de empresas fornecedoras de elevadores, para sua implantação nas indústrias ou em edifícios de escritório. Outro anúncio da Companhia Otis enumera vários edifícios que utilizam seus equipamentos.
Da mesma forma, o intenso crescimento econômico e demográfico impôs mudanças aos padrões normativos para o desenvolvimento das edificações em altura. Apenas quatro anos após a instituição da
Building Zone Resolution de Nova York (1916),era definida a Lei 2332/20.Este novo instrumento normativo dividia a cidade em 4 zonas distintas. Para a zona central, estabelecia em seu Artigo nº 67 os seguintes gabaritos:
- no mínimo 5 metros;
- no máximo, de duas vezes a largura da rua quando for de menos de 9 metros;
- duas vezes e meia, quando a largura da rua for de 9 a 12 metros;
- três vezes, quando a largura da rua for de mais de 12 metros.
No curto espaço de 3 ou 4 décadas, entre 1920 e 1960, a região central seria quase inteiramente transformada por novas edificações. Assistia-se, nestas novas frentes de desenvolvimento da área central, uma intensificação do adensamento e da verticalização da cidade.
A característica dominante estes logradouros, é a massa compacta, contínua e homogênea da morfologia das quadras. Assim, surgiram ao longo de várias das ruas centrais paredões contínuos de edifícios, formando frequentemente corredores à feição de
canyons. Um vasto repertório de edifícios seria ali construído e, a despeito da notoriedade adquirida por alguns exemplares destacados, a grande maioria desta produção é pouco conhecida. Outro traço particular deste processo é a participação de arquitetos estrangeiros imigrados para o Brasil. Um breve levantamento revela a presença de Jacques Pilon, Henri Sajous, August Rendu, Fracisco Beck, Lucjan Korngold, Marjan Ryzard Glogosvski, A. Franz Heep e Giancarlo Palanti, entre outros.
A convergência desses fatores parece indicar um processo peculiar de formação e desenvolvimento da produção de arquitetura moderna em São Paulo. E a concentração de exemplares ali presente chama atenção para a necessidade de seu estudo. O propósito deste trabalho é trazer a discussão de um desses casos: o Edifício Vista Alegre.
A Localização
O terreno de implantação do edifício está situado na convergência entre as duas vias, a Rua Boa Vista e a Rua General Carneiro. Desse ponto é possível divisar uma ampla perspectiva sobre o Parque D. Pedro e a vasta planície que dá sequência aos bairros do Pari, do Brás e da Mooca.
A Rua Boa Vista remonta ao período inicial de ocupação da colina. Sua denominação revela, desde logo, características favoráveis ao sistema de defesa do sítio de implantação do antigo Colégio dos Jesuítas e, a seguir, do estabelecimento da antiga Vila de São Paulo. Situada na borda do promontório orientada para a face Leste, esta rua desfrutava de extensa vista sobre a várzea do Rio Tamanduateí. Limitada por vertentes de taludes de declividade acentuada, a diferença de altura entre o nível desta rua e a borda inferior do vale varia entre vinte e vinte e cinco metros.
A Rua General Carneiro tem origem mais recente, da segunda metade do século XIX. Seu traçado parece ter surgido em decorrência da característica topográfica de uma linha de drenagem. Segundo os estudos de Nestor Goulart Reis
[6] era uma calha de escoamento das águas do primitivo assentamento urbano, para onde convergia a contribuição das águas superficiais de parte do tabuleiro relativamente plano, orientado para a nascente. Designada também como Rua Municipal, esta via recortava o promontório elevado,formando altos taludes lindeiros ao antigo Colégio posteriormente transformado no Palácio do Governo da Província, interligando a parte alta à área de comércio da cidade, junto ao antigo porto fluvial.
Essa enorme depressão interrompia bruscamente a continuidade da Rua Boa Vista e a sua extensão em direção ao Pátio do Colégio somente seria formulada com as primeiras propostas de realização do anel de circulação da área central. Embora as obras do viaduto comecem a ser planejadas em 1912,a sua construção teria início apenas em 1928, tendo sido concluída em 1932. Além de permitir o contorno da área central, a realização desta obra proporcionaria “como consequência, o aumento dos largos do Palácio e da Sé, para estabelecer a comunicação direta das estações ferroviárias pela nova avenida da Conceição, Viaduto Santa Ifigênia com a parte sul da cidade pela rua Capitão Salomão.” Parte de uma ambiciosa proposta de melhorias da cidade, a extensão desta via e, na face Oeste, da Rua Líbero Badaró, impulsionaria a construção de uma série de novos edifícios ao longo de seus perímetros.
Figura 1 – Detalhe do Mappa Topographico do Município de São Paulo, 1930, Folha 51/3. Na parte superior o levantamento registra a interrupção da Rua Boa Vista e a depressão topográfica logo a seguir. Vale notar também o talude na parte posterior do Palácio do Governo e a ladeira da Rua General Carneiro
Um artigo sobre o Viaduto Boa Vista – projetado pelo arquiteto Oswaldo Bratke – revela as características do sítio e as dificuldades de sua transposição, pois teria sido necessária a construção de
Figura 2 – Perspectiva do Viaduto Boa Vista, projeto de Oswaldo Bratke,
Revista de Engenharia Mackenzie, nº 55, p. 24, ref. INS.EEM.REM.050.43
Um desenho do projeto deste viaduto então publicado, trazia ilustradas as edificações a serem erguidas, conforme imaginava o arquiteto, mediante a simulação de uma possível morfologia para o preenchimento das vias lindeiras, certamente tomando em consideração os parâmetros de aproveitamento da área e os padrões de construções praticados no final da década de 1920.
Outros documentos pesquisados são reveladores da configuração peculiar do lote sobre o qual foi implantado o edifício. Entre eles, há duas fontes de grande interesse. A primeira delas é um registro fotográfico de Benedito Junqueira Duarte, de 1936, documentando o viaduto construído há poucos anos. Embora recente, a cena registra o vizinho Edifício Boa Vista, ao que parece recém-construído e, ao fundo, a antiga sede da Bolsa de Valores, projeto do Escritório Técnico Ramos de Azevedo, de 1928. Mas o interesse específico deste estudo se dirige ao edifício na parte inferior esquerda, em primeiro plano, voltado para a Rua General Carneiro. Deste ponto, além do pequeno volume construído, é possível visualizar seu afastamento em relação ao viaduto. Entre o limite da construção e a via pública, restou uma pequena faixa de domínio público, cujo destino foi objeto de discussão entre os detentores do imóvel e o poder público municipal.
Figura 3 – Vista do Viaduto Boa Vista – Foto de Benedito Junqueira Duarte, 1936,
Acervo Fotográfico do Museu da Cidade de São Paulo, Tombo: DC/0000550/A.
O processo nº 14.699/44 trata da aquisição do imóvel da Rua General Carneiro, esq. Viaduto Boa Vista, cujos interessados são Jorge Prado e Maria Helena Prado da Silva Ramos.
A instrução do processo assinala que,
“Após a construção do Viaduto Boa Vista, nesta capital, sobrou uma pequena faixa construível (sic) de terreno, pertencente ao Estado e tendo como único vizinho o prédio da Rua General Carneiro, 115 a 121”,
acrescentando ainda que
“A reconstrução desse imóvel obriga os seus proprietários a proporem a compra, p. anexação dessa faixa de terreno, a fim de atenderem as exigências de seção de urbanismo da Capital.”
Mais adiante, as análises salientariam que
“Sob o ponto de vista urbanístico seria mais interessante que o terreno fosse reunido ao vizinho; com o que seria composto um lote melhor conformado e de maiores dimensões, possibilitando a construção de um edifício bem proporcionado.”
Acrescentando, finalmente, que
“A hasta pública possibilitaria a aquisição do terreno, que é reduzidíssimo (40,22 m2), por terceiros, resultando edifício mesquinho e impróprio para local tão visível e central.”
Francisco Prestes Maia Folha 42 e 43.
Finalmente, deste ponto de vista privilegiado há ainda registros fotográficos que documentam a situação do local em momento imediatamente anterior à construção do edifício. A vasta perspectiva que se descortina da posição elevada do logradouro constitui uma das mais notáveis características deste trecho do território da cidade.
Figura 4 – Vista do Parque D. Pedro II, 1931. Fonte: Acervo Fotográfico do Museu da Cidade de São Paulo, autor desconhecido. Tombo: DC/0019840/P.
O projeto
O estudo do Edifício Vista Alegre tomou como referência principal a documentação de aprovação do projeto. O requerimento para a obtenção de licença de construção foi encaminhado pelos proprietários do imóvel, Paulo Cochrane Suplicy (1896-1977) e André Matarazzo Filho (1919-c.1960) em 19 de abril de 1944, acompanhado da documentação do projeto, constituída de memorial descritivo e de folhas de desenhos. Os desenhos de projeto são assinados por Lucjan Korngold pela “Firma Construtora” e por Francisco Beck como “Autor do Projeto e Construtor Responsável”.
Lucjan Korngold (Varsóvia, Polônia, 1897 – São Paulo, 1963), formou-se engenheiro-arquiteto pela Escola Politécnica de Varsóvia, entre 1921 e 1922. Premiado com menção honrosa na 5ª Trienal de Milão, em 1933, participou da Exposição Internacional de Artes e Técnicas na Vida Moderna (Paris, 1937). Em 1939, após a invasão da Polônia pela Alemanha, exilou-se em Bucareste, onde obtém visto para o Brasil. Em São Paulo, iniciou suas atividades no Escritório Técnico Francisco Matarazzo Neto entre 1940 e 1943. A seguir associou-se ao arquiteto húngaro, entre 1944 e 1946 e a partir de então constituiu o Escritório Técnico Lucjan Korngold Engenharia e Construções.
Francisco Beck (Budapeste, Hungria 1901 – São Paulo, 1990) formou-se engenheiro-arquiteto na Faculdade de Arquitetura da Real Politécnica em Budapeste (1924-1928). Registros de suas atividades em São Paulo aparecem desde 1939, com os projetos do Cine Roxy e do Edifício D. Veridiana. De sua breve associação com Korngold, seriam produzidos entre outros o Edifício Tomas Edson e o Edifício do I.A.P.C.
O
Processo nº 37.899/44 reúne as principais informações de aprovação do projeto. Nele, além dos elementos técnicos apresentados pelos interessados, estão registrados as análises e os pareceres de aprovação do projeto. O conjunto de desenhos levantados no citado processo é composto de um primeiro grupo de folhas de números 65 a77 e um segundo grupo, numeradas de 95 a 121. Um outro conjunto de desenhos, apresentados em 1946, no Processo nº 93.655/46, reúne um conjunto de folhas de números 36 a 47.
O edifício foi implantado em um polígono cuja forma corresponde a um triângulo retângulo, medindo 20,75 x 23,00 x 31,05 metros, equivalentes à área de 238,63 m2. O cateto menor é a linha divisória dos lotes, tendo o outro cateto a extensão da Rua General Carneiro e a hipotenusa a Rua Boa Vista. O volume projetado pode ser dividido em uma base, voltada para a Rua General Carneiro, constituída de um subsolo, um pavimento de dupla altura para loja e duas sobrelojas, até alcançar o nível da Rua Boa Vista. Nesta, há outro pavimento de dupla altura, sobre o qual se desenvolve o corpo principal do edifício de escritórios, compreendendo 11 pavimentos e outros dois em recuos sucessivos até alcançar o coroamento, onde se localiza a residência do zelador. Ao todo o volume alcança 18 pavimentos, 11,05 metros correspondentes à base, 44,10 a partir do nível da Rua Boa Vista e outros 9,95 até o limite do coroamento, totalizando 65,10 metros. A ocupação preenche os limites do lote quase inteiramente, à exceção do pequeno chanfro do vértice da esquina, compensado, todavia, por um balanço da face oeste. Uma estimativa aproximada permite afirmar um índice de aproveitamento igual à 17,33 vezes a área do lote. Área construída no alvará: 4.135 m2 + 228 no subsolo.
O analista do projeto, Eng. Trapé, afirmou que o projeto “infringe o disposto no Artigo 4º do Decreto-lei nº 92/41, quanto à altura máxima no alinhamento do Viaduto Boa Vista (...) a qual deve ser de 2,5 x 16 m = 40 metros. (...) Faço notar ainda – acrescenta – que há, em toda a extensão da fachada no Viaduto, a partir do 7º pavimento, um balanço deste e dos demais, de 52 cm sobre o alinhamento, em desacordo com o Artigo nº 164 do Cod. de Obras”.
[14]
“Além disso – prossegue o engenheiro – a concordância nas duas fachadas é feita por 2 arcos de círculo e concordados por uma reta, no 5º pavimento (andar térreo do Viaduto, pl. fls. 12), infringindo, embora com compensação de áreas, o disposto no Artigo nº 26 do Código de Obras – não se furtando o analista de assinalar – e de mau efeito estético.”
[15]
Em tais circunstâncias, o prosseguimento da análise ficou dependendo da audiência do Prefeito Prestes Maia. Este, em sua manifestação, esclareceria que “o projeto deverá ser considerado como tendo frente para a Rua General Carneiro, pois os estudos de melhoramentos para o local preveem bem maior largura para aquela rua, o que permitirá a altura projetada no seu alinhamento. Também a altura no alinhamento da Rua Boa Vista poderá ser tolerada, à vista do parágrafo 2º [na verdade Inciso II] do art. 3º do decreto-lei 92/41”. Quanto ao “balanço de 52 cm em quase toda a extensão da fachada de Rua Boa Vista” afirma que este elemento “procura resolver o problema arquitetônico sem aumento da área construível (sic), caso obedecesse às exigências do Artigo nº 164 do C. de Obras.” Finalmente, acrescenta não haver “nada a opor ao canto chanfrado projetado no nível do viaduto.”
Dirimida a divergência de interpretação das normas pela manifestação do gabinete do Prefeito, a análise teria seu desfecho pela aprovação do projeto, tendo sido iniciada sua construção.
No final do ano de 1946, o empreendimento foi adquirido pelo Banco Continental de São Paulo S.A. ocasião em que é encaminhada uma substituição de desenhos com pequenas modificações do projeto, todavia indeferida. Sucedem-se vários expedientes administrativos, manifestações e solicitações da municipalidade até finalmente ser alcançada a aprovação final, em 4 de julho de 1947 (Processo nº 50.465/47). Um ano depois o edifício foi concluído, conforme o Auto de Vistoria de 22 de junho de 1948 (Processo nº 63.646/48).
Figura 5 – Elevação à Rua Boa Vista. Fonte: processos de aprovação de projetos da PMSP.
A distribuição interna do edifício pode ser dividida em dois corpos distintos e relativamente autônomos, aquele voltado para a Rua General Carneiro, destinado a atividades comerciais, e o outro para a Rua Boa Vista, composto por uma agência bancária ao nível da rua e o volume vertical destinado a escritórios. Evidência desta autonomia pode ser constatada no serviço de elevadores limitado ao nível da Rua Boa Vista. Apenas a prumada de escadas prosseguia, para atender uma exigência peculiar daquele período, um subsolo destinado a abrigo antiaéreo. Pelo dimensionamento exposto em seu memorial descritivo, este dispositivo tinha capacidade para 275 pessoas, quantia ligeiramente superior ao número de usuários, compreendendo uma área livre de 165 m2, além de “6 grupos de sanitários e uma câmara de descontaminação”. Era acessível por meio de “uma escada principal, servindo a todos os andares e uma de emergência, permitindo a saída para a Rua General Carneiro, enquanto a escada principal permite a saída para a Rua Boa Vista”.
Da forma triangular do terreno resulta, na base inferior do volume, apenas uma face voltada para o exterior, pois a outra é lindeira ao muro de contenção do Viaduto Boa Vista e a terceira tem como limite a divisa. A loja é constituída de um salão inteiramente livre, compreendendo toda a superfície disponível, com uma pequena instalação sanitária no vértice oeste e as prumadas de escadas ao fundo. A ela se sobrepõem dois pavimentos, o primeiro a sobreloja e o segundo, a área de escritórios, caixa-forte.
Figura 6 – Elevação à Rua General Carneiro. Fonte: processos de aprovação de projetos da PMSP.
No nível da Rua Boa Vista – uma das principais vias do centro financeiro da cidade – foi implantada a agência bancária, dividida em área de recepção do público, expediente e sala da gerência. Além do nível inferior, as instalações da agência alcançavam também o primeiro pavimento. A partir do segundo, se desenvolve o edifício de escritórios, composto de 11 pavimentos-tipo e outros dois, mediante recuos sucessivos.
Figura 7 – Planta do acesso ao edifício e agência bancária à Rua Boa Vista. Fonte: processos de aprovação de projetos da PMSP.
Organizar uma distribuição adequada para um edifício de escritórios nos limites de um lote tão reduzido e com uma forma triangular não é tarefa fácil. Esta configuração é pouco frequente, para não dizer rara. Na região central de São Paulo há apenas outros dois casos análogos, o Edifício Saldanha Marinho, projeto inicial de Christiano Stockler das Neves, revisto posteriormente por Elisiário Bahiana e o Edifício Triângulo, projeto de Oscar Niemeyer e Carlos Lemos.
[18] Ambos resultam de quadras autônomas e de dimensões bem maiores, situação favorável a várias alternativas de organização e facilidade de exposição das faces externas. Ambos têm seus espaços distribuídos a volta de um core central de circulação, o que facilita a iluminação e ventilação das áreas de trabalho.
No caso do Vista Alegre, a melhor alternativa foi tomar um dos vértices para implantar a circulação vertical. Na área remanescente, divididas em duas alas se distribuem as salas de trabalho. A bissetriz do vértice oposto define parte do percurso do corredor de acesso. Junto à circulação vertical foram implantados duas prumadas de instalações sanitárias, de uso coletivo, conforme então se fazia. O esquema assim definido, organiza e comanda todo o conjunto de tal maneira que, em uma primeira versão do projeto, os apoios centrais eram formados por pares de colunas distribuídos ao longo deste corredor.
Figura 8 – Planta do Pavimento-tipo. Fonte: processos de aprovação de projetos da PMSP.
No entanto, o sistema estrutural, composto de linhas de pilares distribuídas no perímetro das faces, foi revisto na parte interna, substituída a dupla linha de apoios do corredor por duas possantes colunas situadas próximas ao baricentro do triângulo, tornando a solução mais simples e concisa, evitando excesso de interferência nas dependências da base do edifício.
Resta, finalmente, considerar o tratamento do volume. A aparente simplicidade ou a repetição insistente de um mesmo elemento oculta uma elaboração notavelmente sofisticada.
A superfície externa do volume foi subdividida por uma malha de linhas ortogonais que recortam o volume em um módulo de geometria rigorosa, correspondente a forma quadrada, reiterada pela mesma figura, de menor dimensão correspondente aos vãos de janelas. Há somente uma variação quando o módulo é estendido ao alcançar a dupla altura, no nível da Rua Boa Vista. A geometria desta figura deriva do intervalo entre pilares, parcialmente preenchido com a alvenaria que emoldura e disciplina o ritmo contínuo e regular. A superfície assim definida recobre todo o volume, em suas duas faces. Na transição entre uma face e outra, esta mesma superfície realiza uma concordância por meio da curva no vértice para, em seguida, superposta ao peristilo da agência bancária, soltar-se em balanço, destacada dos planos opacos e contínuos – como pano de fundo – correspondentes aos limites da agência bancária e à prumada de circulação vertical. É como se este enorme invólucro se descolasse da solidez do volume e adquirisse a leveza e a autonomia próprias das superfícies de mero fechamento, quase transparentes, pelo sentido abstrato da malha riscada e pela profundidade conferida pelos vãos. A limpeza da superfície e sua neutralidade cromática parecem sugerir um tratamento de placas autônomas. Essa característica confere uma intensa vibração ao recobrimento do volume.
Em outro edifício do mesmo período – antigo Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Comerciários– Beck e Korngold adotaram o mesmo tratamento de malha de módulos regulares perfurados por vãos para compor e ordenar as elevações. Nesse caso, porém, a composição mantém um procedimento tradicional, de feição classicizante, não obstante o ligeiro deslocamento da face enquadrada em relação ao alinhamento predial. No Vista alegre, no entanto, o desenvolvimento da superfície e a sua continuidade em curva sugere movimento, acentuado pela tensão conferida pela assimetria das faces.
Embora ofereça presença destacada na paisagem urbana, o Edifício Vista Alegre nasceu subordinado aos limites da estrutura fundiária e seu volume arquitetônico está confinado na morfologia urbana, dando continuidade à massa dos edifícios lindeiros, conformando corredores verticalizados, de altura relativamente uniforme, proporcional a largura das vias, conforme então determinavam as normas de construção. Alessandro Castroviejo Ribeiro, discute longamente em sua tese, a partir do argumento de Rowe e Koetter desenvolvido em Collage City os conflitos entre os princípios da arquitetura moderna em face dos condicionamentos da trama urbana da cidade tradicional. Para ele, no Centro Histórico de São Paulo,
“... a arquitetura moderna já nasce marcada pela geografia, pelo tecido antigo, pela legislação e pela lógica da verticalização. Ali o cotejamento entre os dois modelos de cidade – a tradicional e a moderna – expõe contradições, ambiguidades e assimilações aparentemente prenunciadoras de algo inconcluso ou inconciliável”.
Figura 9 – Perspectiva do Edifício Vista Alegre. Fonte:
Revista Acrópole, Ano7, nº81, jan45, p. 278.
De fato, o Vista Alegre constitui exemplo significativo de arquitetura moderna subordinada ao sistema da “rua-corredor”. Contudo, ao ocupar uma área lindeira ao sítio histórico de fundação da cidade, na confluência de duas importantes vias, o edifício adquire uma condição de destaque que o faz oscilar entre a condição de figura e fundo.
E nesta posição privilegiada constitui um marco na paisagem urbana, graças às amplas perspectivas proporcionadas pela depressão da Rua General Carneiro e pela abertura proporcionada pelos taludes lindeiros ao Pátio do Colégio. Em sentido contrário, do interior de suas salas a vista se estende pela vastidão das várzeas do Tamanduateí, dominando o largo horizonte da Zona Leste tendo, em plano mais próximo, a presença do Parque D. Pedro II.
Observações finais
O edifício Vista Alegre não passou ileso ao longo das mais de 7 décadas de sua existência. A agência bancária teve vida breve, substituída por outras instituições financeiras cujos parâmetros arquitetônicos ignoraram sumariamente o refinamento das instalações precedentes em proveito de padronizações aplicáveis a quaisquer circunstâncias. A atividade comercial persiste na Rua General Carneiro, comprometendo, porém, as fachadas do segmento inferior do edifício, pelo impacto da sobreposição de painéis publicitários e da eliminação de esquadrias e revestimentos originais.
A partir da década de 1960, a “vista alegre” das áreas lindeiras à colina histórica começou a ser corroída pelo aumento do tráfego e pela pressão constante da circulação de veículos. O Parque D. Pedro II não foi apenas recortado pela sobreposição de sistemas viários sob a forma de viadutos, mas sofreu sucessivas investidas, quer pela transposição da linha do Metropolitano e sua respectiva estação, quer pela apropriação direta de parcelas de seus terrenos por dois terminais de ônibus – o Terminal do Parque D. Pedro II e o Expresso Tiradentes (antigo Fura-Fila) – desenhados por eminentes arquitetos contemporâneos. Isso para não mencionar propostas recentes, de implantação de túneis de veículos que confinariam permanentemente a calha do rio Tamanduateí, complementados por arranjos paisagísticos que oferecem, ironicamente, uma “praia urbana”.
Apesar da brutal alteração da face lindeira ao núcleo histórico, das interferências nas fachadas e da deterioração parcial de seus paramentos, a qualidade arquitetônica e construtiva do Edifício Vista Alegre ainda manifesta resistência na paisagem urbana de São Paulo, como testemunho do excepcional do dinamismo da cidade e do peculiar desenvolvimento da arquitetura moderna paulistana em meados do século XX.
Figura 10 – Edifício Vista Alegre, 1975. Fonte: Acervo Fotográfico do Museu da Cidade de São Paulo, autor: Waldemir Gomes de Lima (Waldô). Tombo: DC/0001992/F
Referências Bibliográficas
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AYRES NETO, Gabriel. Código de Obras “Arthur Saboya”. São Paulo, Edições Lep, 1947;
Correio Paulistano 24/06/1932 página 01;
FALBEL, Anat. Lucjan Korngold: a trajetória de um arquiteto imigrante. Dissertação de Doutorado. Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2003;
Grupo de Pesquisa “A Construção da Cidade: Arquitetura, Documentação e Crítica”, FAU- UPM. Pesquisa “Centro Histórico de São Paulo: Documentação e Estudos de Reabilitação”. Fundo Mackpesquisa. 2006, 2007, 2009 e 2013;
O Estado de S. Paulo, 10/12/1912, p. 5; O Estado de S.Paulo 24/06/1932 p.4; O Estado de S.Paulo 25/06/1932 p. 3;
REIS, Nestor Goulart. São Paulo, Vila, Cidade, Metropole, São Paulo, Ed. Takano, 2004;
REVISTA ACRÓPOLE, Ano7, nº81, jan45;
REVISTA DE ENGENHARIA MACKENZIE, nº 55, p. 24, ref. INS.EEM.REM.050.43;
RIBEIRO, A. J. Castroviejo. Edifícios Modernos e o Centro Histórico de São Paulo: dificuldades de textura e forma, Tese de Doutorado, São Paulo, FAUUSP, 2010;
ROWE, C., KOETLER, F. Collage City, Cambridge, MS, The MIT Press, 1984.
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https://www1.nyc.gov/assets/planning/download/pdf/about/city-planning-history/zr1916.pdf
Reis, Nestor Goulart, São Paulo: Vila, Cidade, Metrópole, São Paulo, Ed. Takano, 2004.
Id., p. 5.
Revista de Engenharia Mackenzie, nº 55, p. 24, ref. INS.EEM.REM.050.43.
Processo PMSP nº 14.699/44, p. 42.
Processo PMSP nº 14.699/44, p.42-43.
Processo nº 37.899/44, p. 1. Anat Falbel menciona a participação de outros incorporadores como Stefan Neuding, amigo pessoal de Roberto Mesquita Sampaio e Hugo Borghi, este último o principal acionista do Banco Continental (FALBEL, 2003, p. 148).
Processo PMSP nº 37.899/44, p. 86-87.
Id. P. 87.
Id. p. 89
O Estado de S. Paulo, edição de 1/01/1944, p. 3, publica um anúncio do Banco Continental de São Paulo S/A, com uma ilustração do edifício e o comentário: “Prédio da sede própria do Banco Continental de São Paulo S/A (em construção)”.
Moracy Amaral menciona outra obra de Korngold, na esquina da Rua Libero Badaró e ..., cujas características correspondem apenas à concordância dos vértices de planos oblíquos, de resto recorrente em inúmeros edifícios situados em confluência de vias. Acrescenta ainda, o exemplo do “Flat Iron” de Nova York, referência talvez de contexto excessivamente deslocado. (AMEIDA, Moracy Amaral, Pilon, Heep, Korngold e Palanti: Edifícios de Escritórios (1930 – 1960), Dissertação de Mestrado, FAUUSP, São Paulo, 2015, p. 74).
Revista Acrópole, ano 7, nº 81, jan 45, p. 277.