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Edifícios Modernos e a Morfologia da Cidade Tradicional

Edifícios modernos e a morfologia da cidade tradicional[1]
 
Autor: Prof. Dr. Alessandro José Castroviejo Ribeiro
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana  Mackenzie, Brazil.
Palavras-chave: edifícios ,modernos, morfologia, cidade tradicional
 
Resumo

Este artigo trata da relação entre edifícios modernos e a morfologia da cidade tradicional. Particularmente, dos edifícios modernos edificados no Centro Histórico de São Paulo. Inicialmente, discute-se o caráter de formação do centro histórico e as definições gerais entorno da arquitetura moderna; como pensada, elaborada e desenvolvida a partir das vanguardas arquitetônicas dos anos 20, com seu ideário e proposições. A antinomia entre a arquitetura da cidade moderna e a arquitetura da cidade tradicional e suas consequências são tratadas a partir dos aportes teóricos expostos por Colin Rowe e Fred Koetter em “A crise do objeto” (1998). O artigo prossegue com as análises da morfologia centro histórico de São Paulo através da leitura das diversas cartas cartográficas da cidade de São Paulo e de um edifício moderno singular: descrito a partir da formação do lote no qual se encontra construído, da legislação, dos preceitos modernos.

1. Origens coloniais

A atual estrutura urbana do Centro Histórico de São Paulo apresenta uma configuração cujos principais delineamentos guardam relações com os processos de ocupação que remontam às origens da formação da antiga vila colonial. Mas, além disso, documenta as transformações sucessivas por que passou a cidade, notadamente aquelas que testemunham sua transição de vila colonial a cidade cosmopolita na virada do século XIX para o século XX.

A partir dos anos de 1920 tem inicio uma intensa ocupação no centro da cidade de São Paulo; logo substituída, nos anos 30 por edifícios de altura máxima de seis pavimentos, tendência à verticalização que seria potencializada a partir de 1940.  Nesse território uma estrutura viária e fundiária que remonta às origens coloniais foi alargada e ampliada rapidamente. Um tecido foi constituído ao longo do tempo, nos moldes de uma cidade tradicional.

Em paralelo desenvolveu-se a partir das vanguardas dos anos 20 o movimento moderno: com seu ideário, preceitos e proposições. Seus desdobramentos podem ser observados no Centro Histórico de São Paulo. No Brasil e em São Paulo tiveram forte influência, embora não única, os preceitos contidos no ideário do movimento moderno, sobretudo pautado na arquitetura derivada das vanguardas arquitetônicas dos anos de 1920, conforme definição abrangente de Giulio Carlo Argan em “A Arte Moderna”. Particularmente ao racionalismo formal representado na figura de Le Corbusier; referência emblemática, embora não única, para a arquitetura moderna brasileira.

Entretanto, esse moderno que se edificou no Centro Histórico de São Paulo nasceu com dificuldades de textura e forma, pois a estrutura urbana ali encontrada era a cidade tradicional: tecida sob uma lógica contrafeita aos preceitos modernos. 

2. Um tipo ideal para a cidade moderna

Definições clássicas da morfologia urbana identificam como elementos constituintes de uma cidade tradicional: o solo; os edifícios (o elemento mínimo);- o lote (a parcela fundiária); o quarteirão, a fachada (o plano marginal); o logradouro (espaço privado do lote sem construção); o traçado/a rua, a praça, o monumento, árvore e a vegetação; o mobiliário urbano (Lamas, 2007, p. 79-110).

Esses elementos segundo Lamas serão utilizados no desenho das cidades [ou de suas partes] – sobretudo a partir do renascimento até ao período moderno. Assim, sistemas de relações entre esses elementos morfológicos de diversas formas promoveram variações decorrentes de intenções espaciais, estéticas, de estilo e gosto, de condicionantes pré-existentes, topográficas ou territoriais. Nessa descrição o traçado ou a rua; o quarteirão subdividido em lotes; edifícios e logradouros; a praça e seus recintos; os prédios com suas fachadas; os edifícios singulares; [...] não só constituíram essas cidades, mas se revelariam igualmente importantes para a compreensão da urbanística moderna e contemporânea (2007, p. 227).  Nas ideias e desenho das cidades modernas esses elementos – um a um – seriam sistematicamente questionados, desmontados ou revistos. As razões encontram-se num amplo espectro de situações e complexidades, mas a industrialização e questões dela decorrentes como o inchaço populacional e a insalubridade das cidades insuflam uma mentalidade de época. 

Na mais discutida manifestação dos CIAMs – a Carta de Atenas – as argumentações, descrições e elementos da cidade moderna são reiteradamente apresentados. Passo a passo são inventariados os elementos da cidade tradicional [em particular de seus centros históricos] que devem ser debelados. Na apresentação das generalidades da carta além da atenção às profundas alterações da industrialização já se esboça uma primeira crítica em torno da rua: os congestionamentos. Outras tantas virão no “Estado atual crítico das cidades”: altas densidades de ocupação e degradação no interior do núcleo histórico das cidades [um obstáculo]; insuficiência da superfície habitável, mediocridade das aberturas, ausência de sol; presença de germes mórbidos; ausência de instalações sanitárias; má orientação dos imóveis, construções compridas e privadas de espaço.

Os primeiros argumentos da carta têm nas espacialidades centrais o alvo preciso da crítica da época [moderna]. Embora a referência esteja diretamente vinculada na historicidade europeia, muito dessas “desqualificações” reproduziram-se no Centro Histórico de São Paulo, como a profundidade e estreiteza dos lotes. No mesmo sentido arrolam-se os argumentos contrários à rua-corredor: Em “Urbanismo” (2000) Le Corbusier é enfático na condenação da rua-corredor e do prédio construído sob medida: dois elementos característicos e constituintes da morfologia do centro paulistano.

O diagnóstico dos problemas gerados pela industrialização sobre a trama da cidade tradicional avança em item após item; em determinado ponto tocam duas questões relevantes: a dissolução da rua, pela sua especialização funcional excessiva e o fim da divisão fundiária baseada no lote individual (Carta, IPHAN, p. 12-14).

3. A crise do Objeto?

Colin Rowe e Fred Koetter em “Ciudad Collage” (1998) formulam uma teoria crítica sobre a cidade. Utilizando-se dos mapas de figura e fundo (cheios e vazios) esboçam e confrontam duas categorias de cidade a tradicional e a moderna.  Os edifícios modernos e a cidade moderna, nos termos dos autores, promoveram aquilo que chamaram de “A crise do objeto”. Ou seja, na cidade tradicional os elementos primários como lote, quadra, rua, praça, e os edifícios construídos, formam um tecido no decorrer de um longo período. De tal maneira que aquilo que se identifica ou se nomeia como figura é o espaço público; conformado pelo conjunto dos edifícios que os delimitam e lhe dão forma. Ao contrário, na cidade moderna (sobretudo a idealizada), o tecido tradicional é substituído por grandes sistemas de circulação e novas divisões fundiárias: assim, os edifícios se apresentam soltos no espaço. A figura então passa a ser o edifício, e por decorrência, tem-se a dissolução (dispersão) e descaracterização daquilo que se denomina como espaço público. Por meio, sobretudo, de um novo ideário funcionalista e de legislações próprias procura-se fazer uma cidade onde os edifícios progressivamente isolaram-se no lote ou nas novas formas de ocupação que foram desenhadas. Nesse sentido, uma linguagem arquitetônica nova encontra os meios para se expressar plenamente por um objeto solto no espaço; dissociado das amarras do lote. A crise do objeto seria, então, a incapacidade do edifício moderno de sugerir ou conformar o espaço público nos termos e relações anteriormente edificados.

Munford (apud Rowe; Koetter, 1998, p. 55) sublinha na moderna planificação funcional o abandono de concepções arquitetônicas mais tradicionais que enfatizavam apenas o plano ou as fachadas: arquiteturas coladas umas às outras, sem recuos laterais. A moderna arquitetura, pelo contrário, abole a distinção entre frente e parte posterior, criando estruturas que são harmoniosas em cada direção: em suma, liberta o edifício do contato insalubre típico das cidades tradicionais.

Progressivamente altera-se a maneira de projetar o edifício e a cidade, sobretudo, pelas novas demandas habitacionais. Rumo aos anos 30, a desintegração da rua e de todo o espaço público parece inevitável. Seriam duas as razões principais: a nova e racionalizada forma de se projetar as habitações e as novas necessidades ditadas pelos veículos (Rowe; Koetter, 1998, p. 58).

Ao confrontar, por mapas de figura e fundo, a cidade moderna e a tradicional, Rowe e Koetter procuraram expor as dificuldades de textura da cidade moderna: que vão além das simples relações entre o sólido e o vazio. Pelo contrário, apontam para uma nova dimensão do que é privado, do que é público. Na cidade tradicional, a massa das edificações promove de certa maneira a estabilidade pública, ao fazer figurar o vazio, dando-lhe forma: nesse caso, tem-se a estabilidade pública por um lado e por outro a imprevisibilidade privada; contida nos seus limites. A cidade moderna ao figurar o objeto – que se expressa a partir de relações internas sinceras, programáticas ou técnicas – conferindo-lhe um status universal, promove a demolição da vida pública e do decoro, reduzindo o domínio público, o mundo tradicional do civismo visível a um resto amorfo (Rowe; Koetter, 1998, p. 64).

4. A morfologia do Centro Histórico de São Paulo

Os aportes teóricos e documentos abordados relacionam uma série de conceitos  importantes para a compreensão da arquitetura moderna no Centro Histórico de São Paulo. A hipótese é de que os edifícios modernos, como descritos até aqui, estão intimamente vinculados ao ideário da arquitetura moderna; da cidade da arquitetura moderna.

Esses edifícios, mesmo distantes das idealidades e cartas, carregam em suas expressões os princípios modernos principalmente aqueles plantados por Le Corbusier e manifestados indiretamente na Carta de Atenas, diretamente no Urbanismo e nos projetos da Cidade Contemporânea e Radiosa.  Essa noção descarta maniqueísmos fáceis: a aparente sincronização entre a lógica da técnica (estrutura independente), passando pela célula de habitação até um todo acabado, não ocorreu sem ajustes. Ainda assim, acredita-se que os edifícios modernos mesmo fora dessas situações ideais manifestam as lógicas modernas: das orientações, dos edifícios em lâmina (com empenas cegas), da estrutura independente, dos pilotis, das fachadas envidraçadas e livres, das técnicas industriais.   

Os confrontos propostos por Rowe e Koetter são contundentes e esclarecedores. No Brasil, a capital federal – Brasília – é nos limites de seu plano piloto exemplar. Porém, no Centro Histórico de São Paulo não é possível uma distinção tão clara. Pelo contrário, ali a arquitetura moderna encontra-se imersa na configuração de uma cidade tradicional. Nesse sentido, as dificuldades de textura do edifício moderno a que se referem Rowe/Koetter não se reproduzem por inteiro no Centro de São Paulo: pelo contrário, em diversas situações seus edifícios modernos encontram-se desempenhando o papel de fachada pública (“parede interna” do espaço público). Ou seja, pelas características de seu tecido – traçados (vias), ocupações e legislação – o Centro “impõe” aos edifícios nele edificados a contingência da contiguidade e continuidade das massas construídas.

Numa primeira visualização do mapa de figura e fundo do Centro Histórico de São Paulo (sobre base Gegran – Viva O Centro) é difícil perceber uma trama moderna: embora ela exista, sobretudo, no traçado de algumas das avenidas São João, Ipiranga, São Luís, Consolação, Rangel Pestana e na urbanização do Anhangabaú. São marcas modernas, mas não necessariamente modernistas. O primeiro anel do Plano de Avenidas e as radiais nele propostas são elementos demarcadores evidentes, ainda que essas circulações conformem grandes espaços, elas ainda encontram-se circundadas por formações densas de edifícios que ocupam quase que integralmente os lotes e suas testadas.

Num segundo momento é possível distinguir quais são os edifícios e espaços públicos que desempenham o papel de figuras nos termos colocados por Rowe/Koetter. De imediato percebem-se os espaços das praças e largos, depois dos edifícios geralmente públicos anexos a esses lugares e finalmente as próprias ruas fechando a descrição de uma cidade tradicional. Assim, pode-se identificar na colina histórica o Pátio do Colégio, as praças da Sé, Patriarca, os largos de São Bento e São Francisco. No Centro Novo, o Largo do Paissandu, as praças da República, Dom José Gaspar e Ramos de Azevedo. Continuando vê-se ainda algumas formas (edifícios) isolados e contíguos aos logradouros públicos; ainda prédios institucionais: a Igreja de Anchieta, a Catedral da Sé, a Igreja do Paissandu, a Escola Caetano de Campos, a biblioteca Mário de Andrade, o teatro Municipal (figura 1). 

Se o recorte ou atenção se prende às duas formações mais centrais a Colina Histórica e o Centro Novo, intermediados pelo vale do Anhangabaú, o que se vê são os rastros das antigas formações: quadras irregulares subdivididas por lotes profundos – decorrentes das constituições coloniais nas quais havia forte hierarquia entre ruas, determinado frontalidades e fundos nem sempre edificados (figura 2 e 3).

De Bem, em São Paulo, cidade, memória e projeto (2006), faz uma interpretação das transformações do Centro Histórico a partir do relevo geográfico, das continuidades e descontinuidades, o núcleo urbano e a rede fluvial. Colina, Várzea do Carmo, Rio Tamanduateí: toponímias de origem. A geografia prefigura a história; Euclides da Cunha (apud De Bem, 2006, p. 11).  De partida os vestígios de um tecido que será, em ritmos distintos, construído por sucessivas cumulações: caminhos, fluxos, parcelamentos.

Quando a análise se volta para as cartas de Sara-Brasil e Gegran é possível observar que as ocupações continuam a manter a constante dos alinhamentos das edificações à rua e a ausência dos recuos laterais entre as edificações (figura 4).

Deslocando-se o foco para outros trechos, pode-se identificar uma ou outra arquitetura moderna desgarrando-se da trama urbana e conformando-se como uma figura: agora não mais ligada às instituições – mas ao mundo privado das habitações e edifícios de negócios. Os edifícios Copan, Itália, Eifell e Triângulo são figuras destacáveis, mais por suas volumetrias do que projeções.


Figura 1: Centro Histórico de São Paulo - Mapa Figura e Fundo 1) Pátio do Colégio, 2) Praça da Sé, 3) Praça do Patriarca, 4) Largo de São Bento, 5) Largo de São Francisco, 6) Largo do Paissandu, 7) Praça da República, 8) Praça Dom José de Gaspar, 9) Praça Ramos de Azevedo


Figura 4: Mapa Sara-Brasil- 1930 - Recorte pelo Centro Velho, Vale do Anhangabaú e Centro Novo



Figura 2: Recorte pelo Centro Velho - Mapa Figura e Fundo, base Gegran.  Colina Histórica: Edifícios Modernos Estudados; 5) Banco Paulista do Comércio (Rino Levi, 1947-50; 9) Conde de Prates (Giancarlo Palanti, 1952); 10) Triângulo (Oscar Niemeyer, 1953).



Figura 3.  Recorte pelo Centro Novo , Edifícios Estudados: 1) Esther e Arthur Nogueira (Álvaro Vital Brasil e Adhemar Marinho, 1936); 2, 6 e 13 , Jaçatuba, ABC e Renata Sampaio (Oswaldo Bratke, 1942, 1949 e 1956); 3) Thomaz Edison (Lucjan Korngold e Francisco Beck, 1944); 4) CBI-Esplanada (Lucjan Korngold, 1944); 7, 8, 14 e 15, Edifício e Galeria Califórnia, COPAN, Eiffel e Seguradoras (Oscar Niemeyer, 1951, 1951,1956 e 1958); 12, Edifício Itália (Adolf Franz Heep, 1956);16, Conjunto Metropolitano ( Salvador Candia e Giancarlo Gasperini, 1960).

5. Banco Paulista do Comércio: um moderno exemplar na colina histórica

A forma e linguagem do Banco Paulista do Comércio, 1947-50, de autoria de Rino Levi, são exemplares paro no esclarecimento das relações entre a arquitetura moderna e Centro Histórico de São Paulo.  No edifício é notável a origem do lote, a horizontalidade dos planos de laje, a transparência das esquadrias, os pilotis e o escalonamento sucessivo que desenha sua complexa e desigual volumetria final.

Na “Planta da Imperial Cidade de São Paulo”, 1810, de Rufino José Felizardo e Costa, e na carta de 1842 de José Jacquez da Costa Ourique,é possível identificar próximo ao Convento de São Bento a esquina da Rua Boa Vista com a futura Ladeira Porto Geral, que caracterizará o Banco Paulista do Comércio. Na carta de 1881 de Henry B. Joyner (Planta da Cidade de São Paulo, levantada pela Companhia Cantareira e Esgotos) a esquina lá está e os lotes que formarão o terreno do banco já se esboçam (fig. 5). No mapa Sara Brasil e numa foto de 1930 o lote e as edificações que darão lugar ao Banco Paulista encontram-se bem definidos: é possível perceber com clareza a geometria do lote de esquina e do lote que se aprofunda na quadra. Nesse lote, duas volumetrias marcantes revelam o “Teatro Boa Vista”, projetado em 1915 por Julio Micheli; que depois de demolido daria lugar ao Banco  Paulista do Comércio. Nota-se que o teatro era composto por dois corpos: um destinado às atividades administrativas e outro ao teatro propriamente dito, com plateia, palco etc. Esses dois corpos são implantados num lote de conformação final em “L”; resultado de um processo de anexações relativamente constantes e notáveis desde o final do século XIX (fig.6). Essa disposição em “L” permanecerá a mesma no edifício projetado por Rino Levi, como identificável, no mapa Gegran (1972) (fig.7).

A legislação na época de construção do Banco estava fundada nos escalonamentos sucessivos, ou setbacks à semelhança de Nova York. A altura e forma das edificações eram definidas pela largura das ruas. A legislação permitia para ruas acima de 12 m, construir no alinhamento até 2,5 (duas vezes e meia) a largura da rua. A partir dessas alturas, era permitido construir mais pavimentos, desde que respeitassem os recuos sucessivos delimitados pelo prolongamento da linha inclinada (hipotenusa) traçada pelo lado oposto da rua. No mesmo decreto, outro dispositivo da lei permitia nos lotes de esquina, em vias públicas de largura diversa, a altura máxima pela via de maior largura, estendendo-se unicamente até a profundidade de 20 m. Esses dispositivos determinaram a configuração final da volumetria do edifício: um corpo mais homogêneo e regular na esquina e outro menor, na Ladeira Porto Geral, no qual o escalonamento é mais visível e expressivo (fig.8 e 9).

Se o arranjo final das plantas e respectivas volumetrias esboçam uma composição difícil, mais do que uma reprodução pura e simples do lote, a manipulação das premissas modernas ou de seus conceitos mais gerais mostram-se ainda mais admiráveis. Nesse sentido, as orientações das fachadas voltadas para a Rua Boa Vista (sudoeste) e Ladeira Porto Geral (sudeste) favoreceram a clareza de três  elementos modernos universais: a ossatura independente, fachada livre e “pilotis”.

Os planos paralelos das lajes e a procura pela regularidade das modulações dos pilares demonstram o confronto entre a idealidade moderna, racionalidade e abstração – e as circunstâncias particulares do terreno. Percebe-se, dessa maneira, a tentativa imperiosa da modulação; que sempre deve ajustar-se às irregularidades do lote. Por outro lado, percebe-se na forma do edifício uma série de ajustes que parecem indicar a procura de uma conciliação entre este e a cidade: ou, a superação de uma aparente contradição entre o moderno e a cidade tradicional. Os primeiros elementos são identificáveis no térreo da Rua Boa Vista: a loggia, o pé-direito duplo da agência e o tratamento em mármore nas paredes e pastilhas nos pilares denotam a importância do chão. Porém, o principal elemento formal dessa relação entre edifício e cidade encontra-se na curvatura da fachada para a Rua Boa Vista: ela está postada para a linha visual dirigida para as cercanias do Pátio do Colégio, origem da fundação da vila colonial.        

Assim, na relação entre os edifícios modernos e o Centro Histórico de São Paulo, a rua é o elemento determinante em sua configuração final. Por isso, ao se caminhar pelo centro o que se vê, com frequência, é a contínua sucessão de fachadas conformado o espaço público da rua. Nesta configuração fica evidente – no tratamento arquitetônico - a hierarquização entre fachadas principais e secundárias.  No  CHSP proposições e características modernas como repetição, industrialização e tipo ideal, foram substituídas pela singularidade, pela manufatura (concreto armado moldado in loco) e composição lote a lote.   Nestes termos, a cidade tradicional ao manter qualidades e hierarquias próprias do espaço público, por meio de elementos como a rua-corredor, largos e alinhamentos, transferiu caracteres a essa arquitetura moderna, conferindo-lhe valores, memórias e sentidos (fig. 10).


Figura 5: Planta da Cidade de São Paulo,1881; pormenor largo São Bento e Ladeira Porto Gera. Na esquina da Rua Boa Vista e Ladeira Porto Geral há duas volumetrias e dois lotes que darão origem ao Banco Paulista de autoria de Rino Levi.



Figura 6, Sara Brasil, 1930; pormenor largo São Bento e Ladeira Porto Geral. Assinalado a conformação do lote sobre o qual nasceria o Banco Paulista.



Figura 7, Situação atual, Gegran, 1974. Pormenor largo São Bento e Ladeira Porto Geral e a implantação atual do Banco Paulista.



Fig. 8: Banco Paulista, duas volumetrias e a deformação em função da legislação da época: recuos sucessivos.


Fig.9. Banco Paulista, 1947-50, à época de sua construção no centro antigo.



Fig.10: Banco Paulista, visto pela Rua Boa Vista, sob o imperativo da rua-corredor.

Bibliografia

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CURTIS, William J. R.  Le Corbusier: ideas and forms. New York: Phaidon,2006
DE BEM, José Paulo. São Paulo: cidade/memória e projeto. Tese de Doutorado. São Paulo, FAU-USP, 2006.
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RIBEIRO, Alessandro José Castroviejo. Edifícios Modernos e o Centro Histórico de São Paulo: dificuldades de textura e forma. Tese de doutoramento. São Paulo, FAU-USP, 2010. 
ROWE, Colin; KOETTERr, Fred. Ciudad Collage. Trad: Esteve Riambau Sauri.  Barcelona: Gustavo Gili, , 1998.  
Comissão IV centenário da cidade de São Paulo. São Paulo Antigo – Plantas da Cidade, São Paulo, 1954. 
Créditos das ilustrações: Figuras 1, 2, 3 e 7.: Mapa figura e fundo sobre base Gegran (Viva o Centro) - Alessandro J. Castroviejo  Ribeiro e Tiago Azzi Collet e Silva.Figuras: 10: Alessandro J. Castroviejo  Ribeiro.Figuras 9. ANELLI, Renato (pesquisa de texto), GUERRA, Abílio (coordenação editorial) e KON, Nelson (ensaios fotográficos). Rino Levi: Arquitetura e cidade. São Paulo: Romano Guerra, 2001.Figuras 8: Arquivo Rino Levi, FAU USP
 

[1] Texto publicado em O palco da Arquitetura: II Seminário de Arquitectura, Urbanismo e Design da Academia de Escolas de Arquitectura e Urbanismo de língua portuguesa
 



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