Semana de Arquitetura da FAU Mackenzie
Grupo de Pesquisa:
Centro Histórico de São Paulo
Membros do Grupo:
Líder: Prof. Marcos Carrilho
Profa. Cecília Rodrigues dos Santos
Prof. Alessandro Castroviejo Ribeiro
Prof. Paulo Del Negro
1. Introdução
O trabalho teve início como resultado de um convênio firmado (data) entre a Universidade Presbiteriana Mackenzie e a EMURB – Empresa Municipal de Urbanização com a participação da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo e o Departamento do Patrimônio Histórico – DPH.
Vem sendo realizado como parte das atividades didáticas da disciplina de Técnicas Retrospectivas. A cada semestre os alunos são solicitados a promover pesquisas de logradouros da área central a partir de levantamentos de arquivos e de campo. Isto tem permitido reunir quantidade considerável de informações que aguardam condições adequadas para seu processamento. Alguns requisitos para tanto já foram atingidos, como o regime de contratação de professores com dedicação à pesquisa. Outros, como os recursos de agências de financiamento de pesquisa, que permitam contar com pesquisadores, bolsistas e com recursos para despesas estão em curso.
Além dos objetivos didáticos, o trabalho parte de um conjunto de pressupostos capazes de evidenciar situações paradigmáticas, que passo a comentar:
2. Expansão do Conceito de Patrimônio Cultural
Da noção de monumento excepcional, baseado em atributos de valor histórico ou artístico de alto significado, o foco da preservação tem se deslocado para a consideração do valor cultural em sentido amplo. Esta expansão do conceito de patrimônio tem permitido contemplar amostragens de objetos por seu valor de representação de processos e trajetórias ligados ao passado. Tais testemunhos não se distinguem apenas por sua referência a uma identidade única e genérica, mas entram em consideração as distintas formas de identidade e de componentes que caracterizam grupos, etnias e toda a segmentação do tecido social por gênero, idade, afinidade cultural, etc. Assim, da noção tradicional de monumentos de importância histórica ou artística, destacados de seus contextos como episódios singulares, a preocupação da preservação passou a assimilar todo o espectro da produção cultural. Do mesmo modo, enquanto a atividade de preservação expandiu e consolidou seu campo de atuação, adquirindo legitimidade e se enraizando na sociedade, se tornou quase impossível promover renovações urbanas contra a opinião pública. O público não é mais indiferente à substituição das velhas estruturas.
Uma casa antiga, um chalé pitoresco, um jardim refinado, um marco urbano, qualquer coisa que possa constituir referência de um sítio particular ou da memória de um grupo social, imediatamente se torna objeto de interesse do senso comum. Novas noções, como a idéia de Patrimônio Ambiental Urbano, que incorpora atributos mais amplos e diversificados, vêm respondendo de maneira mais adequada aos temas contemporâneos com que se defronta o problema da preservação. Consequentemente, novos aspectos da cidade começaram a ser reconhecidos como portadores de valor. Bairros, assentamentos urbanos, praças, parques e áreas naturais tornaram-se objeto de atenção para a preservação. Este largo espectro de interesse também tem se associado à crescente preocupação da sociedade com o meio ambiente e a qualidade de vida, em relação aos quais os temas da ecologia e da memória constituem componentes essenciais.
- A cidade como território da diversidade
As cidades modernas, por sua vez, desafiam a noção de harmonia e de unidade. São constituídas pela superposição sucessiva de camadas. Tomam forma como o resultado da reunião de muitos fragmentos que persistiram ao longo do tempo. Sobre um traçado urbano inicial, edifícios são continuamente construídos e reconstruídos. Novas estruturas urbanas se sobrepõem sobre a configuração original em resposta a novas demandas. Novas áreas são abertas à expansão das fronteiras urbanas, integrando-se a seguir à velha estrutura. A cidade é constantemente reconstruída sobre si mesma. A forma resultante desse processo não é aquela na qual a harmonia e a unidade são freqüentes. Ao contrário, a diversidade é geralmente a nota dominante. Uma grande variedade de elementos constitui o caráter definidor da configuração urbana. A cidade de São Paulo é um exemplo que incorpora precisamente esta condição.
Isto, contudo, não combina muito com a maneira de pensar dos preservacionistas. A tradição de atividade neste campo buscou contemplar, na maioria dos casos, o legado mais antigo, ou seja, aquelas estruturas que ficaram a margem dos processos de desenvolvimento e transformação urbana. As edificações esquecidas, que sobreviveram guardando sua feição particular, ou que permaneceram abandonadas, as cidades estagnadas que persistiram conservando sua morfologia uniforme, de configuração relativamente equilibrada, e a unidade característica dada pelo estágio alcançado em determinado período, constituem os atributos que mais frequentemente justificam as medidas de proteção.
Decorre daí, em boa medida, a adoção de valores estéticos tradicionais, que dependem de categorias como harmonia e unidade artística. Da mesma forma, a maioria dos critérios de preservação de centros históricos busca estabelecer relações compatíveis em termos de escala, ritmo e continuidade. Como conseqüência, a atividade dos preservacionistas tende a ser conservadora, seja em relação aos critérios de valor, seja em relação ao conceito de patrimônio e sua abrangência, deixando desatendida uma importante parcela desse legado cultural.
Talvez por isso o centro histórico de São Paulo tenha permanecido por tanto tempo sem o devido reconhecimento de seu valor. E, se já obteve algum, este ainda é parcial, a julgar pelas medidas até aqui tomadas pelas instituições responsáveis pela proteção do patrimônio cultural. Os dois tombamentos da região central foram feitos mais como conseqüência de ameaças decorrentes de políticas públicas, que pela ação sistemática e criteriosa de avaliação e reconhecimento do acervo existente.
- O valor da diversidade
Se estas considerações preliminares são verdadeiras, poderíamos partir da hipótese de que todo o centro histórico de São Paulo é dotado de valor, tanto em relação à estrutura urbana como e relação ao conjunto do parque edificado.
A atual estrutura urbana apresenta uma configuração cujos principais delineamentos guardam relações com os processos de ocupação que remontam às origens da formação da antiga vila colonial. Mas, além disso, documenta as transformações sucessivas por que passou a cidade, notadamente aquelas que testemunham sua transição de vila colonial a cidade cosmopolita na virada do século XIX para o século XX. Inicialmente, a transposição do Vale do Anhangabaú, permitiu a ampliação da malha urbana dando início à formação do bairro de Santa Ifigênia, em seguida os Campos Elíseos e outros.. que viriam a configurar a assim chamada “Cidade Nova”. Na primeira metade do século XX, a área central foi objeto de uma sucessão de projetos de “melhoramentos” e reformas urbanas que buscaram atender a vertiginosa transformação pela qual a cidade passou no período. Das diretrizes pioneiramente formuladas por Silva Telles até a reurbanização do vale do Anhangabaú, muitas mudanças ocorreram. Da mesma forma, de Silva Freire a Prestes Maia, embora os sucessivos planos urbanísticos tenham trazido grandes contribuições para a modernização da nascente metrópole, a maioria deles não se implantou integralmente, sofrendo adaptações e acomodando-se às contingências políticas e administrativas. E, finalmente, apesar do enorme impacto das transformações viárias e das contrapartidas recentes de fechamento ao tráfego de veículos de vários de suas vias, seus efeitos não chegaram a comprometer a conformação da estrutura, do traçado e de parte dos logradouros, que persistem em suas diretrizes principais, vinculando a área central à suas origens.
O acervo de edifícios, por sua vez, é composto de uma amostragem que cobre um largo espectro de manifestações da arquitetura, desde alguns vestígios de obras ainda do século XVIII – especialmente edifícios religiosos – a exemplares significativos de vários períodos do século XIX e uma expressiva quantidade de edificações que marcam a transição da Arquitetura Eclética para a Arquitetura Moderna na primeira metade do Século XIX. É possível ainda perceber a presença simultânea de mais de um período distinto, notadamente o contraste entre a arquitetura da Primeira República e o adensamento e a verticalização de meados do século XX, tal como demonstram as pesquisas realizadas na Rua Barão de Itapetininga. Porém, se é possível perceber com certa nitidez as características das edificações da Primeira República, representadas por obras públicas como a Escola Caetano de Campos e o Teatro Municipal, mas também obras particulares como o Hotel da Paz e os edifícios das esquinas da Praça da República e da Rua Dom José de Barros, não se pode dizer o mesmo da etapa seguinte. O aproveitamento imobiliário se intensifica. O conjunto dos exemplares deste período apresenta mesmo certa homogeneidade, decorrente das normas urbanísticas que condicionavam o desenvolvimento das edificações. Contudo, estas semelhanças podem confundir o observador, pois os critérios adequados para a análise de sua arquitetura ainda estão por ser estabelecidos. Se a historiografia da arquitetura reconheceu e consagrou exemplares da Arquitetura Moderna como o Edifício Esther, por exemplo, não podemos negligenciar a importância de obras pioneiras, porém pouco conhecidas, como o edifício Casa Guatapará de 1929. Despreza-las apenas por seus aspectos estilísticos não significa apenas sucumbir aos preconceitos, mas confundir conteúdo com aparência. Este, como vários outros exemplos, evidenciam a potencialidade do estudo na revisão da historiografia da Arquitetura Moderna de São Paulo.
- O valor econômico do patrimônio cultural e a importância da reabilitação
Verifica-se, pois, que o Centro Histórico é constituído de um parque imobiliário de excelente qualidade, com alta densidade de ocupação, na área mais acessível da cidade, dotada da maior rede de infra-estrutura. Alia-se a esta condição o valor cultural que suas estruturas urbana e arquitetônica encerram. Destaca-se ainda pelo valor simbólico tanto das associações vinculadas ao sítio de fundação da cidade, como ao cenário urbano, palco de episódios históricos de grande relevância e, finalmente, o valor referencial de várias obras e monumentos.
A área abrigou historicamente o centro de negócios de uma vasta região polarizada pelas atividades econômicas de São Paulo. Somente na década de setenta a hegemonia deste centro começou a ser alterada, com a transferência gradativa de parte das atividades financeiras e de serviços para o eixo da Avenida Paulista, processo que prosseguiu, mais adiante, em direção à zona sul. Não obstante, parte ponderável da atividade financeira persistiu no Centro Histórico. Apenas a partir do início da década nos anos 80 se acentuou o deslocamento das atividades econômicas da região central. São vários os fatores responsáveis por este processo.
Tais áreas vêm apresentando condições de crescente decadência, motivadas, pelos efeitos típicos dos ciclos de obsolescência das estruturas físicas. Em conseqüência, as atividades tradicionais de serviços e comércio, características da área central, têm se deslocado para outras regiões da cidade, buscando situações mais adequadas a sua implantação, favorecidas ainda pela presença e concentração de público consumidor de maior poder aquisitivo. Decorre daí a ociosidade de considerável número de edificações e a progressiva degradação da região central. De um lado, o processo de obsolescência das estruturas edificadas constitui um obstáculo de difícil superação, face à demanda por instalações dotadas dos recursos necessários ao desempenho de atividades que exigem atualização tecnológica, num mercado altamente competitivo e dinâmico. De outro, a concorrência entre os estabelecimentos comerciais tem levado a formas de ocupação de cunho predatório, agravadas pela desfiguração dos edifícios e pela instalação indiscriminada de toda a sorte de aparatos publicitários. Disso resulta uma intensa poluição urbana e uma imagem de desordem extremamente prejudicial ao conjunto das atividades ali desenvolvidas. Finalmente, os principais logradouros vêm sendo ocupados pelo comércio ambulante, o que tende a acentuar as disputas entre o comércio formal e o informal, contribuindo ainda mais para a deterioração da área. Convivem situações paradoxais. O movimento intenso das ruas se restringe apenas ao horário de atividade comercial. Nos demais períodos a região se apresenta quase totalmente desocupada, salvo pela presença crescente dos assim chamados “sem teto”, que buscam abrigo sob as marquises dos edifícios, criando uma atmosfera pouco estimulante à presença do eventual transeunte.
Assim, entre os fatores de decadência da área podermos enumerar os seguintes:
- obsolescência dos edifícios;
- deslocamento das principais atividades e serviços;
- ruas tomadas pelo comércio ambulantes;
- ocupação limitada ao horário comercial;
- sem-tetos habitando marquises e espaços públicos.
Esta condição é conhecida pela opinião pública e pelas várias correntes políticas. Todos concordam que é necessário desenvolver programas para interromper o processo de deterioração da área e promover a sua recuperação.
Por outro lado, o abandono da área em decorrência de sua decadência constituiria enorme prejuízo social caso esta tendência venha a persistir e se agravar. A opinião pública já manifestou de várias maneiras sua disposição de atuar com o objetivo de reverter este quadro. Associações civis e entidades profissionais têm promovido debates tentando definir ações conjuntas que venham a contribuir para a recuperação da área. O poder público, da mesma forma, tem demonstrado o propósito de investir e promover incentivos à recuperação da área.
Contudo, para alcançar a recuperação da área central, é preciso demonstrar a potencialidade econômica e os consideráveis benefícios que poderiam resultar da retomada do dinamismo característico de sua antiga vocação, não apenas como o centro de negócios mais importante da metrópole paulistana, mas também como área de apropriação diversificada, seja para fins sociais como habitação, seja para fins culturais, de lazer ou turismo.
Mas, embora as últimas administrações tenham promovido ações com este objetivo, seu alcance é limitado. Vontade política e iniciativas do poder público constituem requisitos importantes, mas não suficientes. A reabilitação efetiva de uma área tão vasta e complexa depende de uma ampla interação de agentes e de fatores capazes de colocar em movimento cadeias de ações de efeito cumulativo e multiplicador. Dentre estes, a percepção do potencial econômico da área constitui um dos principais fatores que podem desencadear tais efeitos. Da mesma forma, é preciso encontrar um equilíbrio adequado entre as iniciativas da administração pública e do setor privado. Portanto, é necessário promover estudos demonstrarem o potencial econômico da área. Para tanto, é necessário realizar pesquisas para conhecer a situação das estruturas arquitetônicas existentes. E, nesse processo, avaliar o nível de ociosidade das edificações, o seu estado de conservação, a condição de obsolescência de suas instalações, de modo a demonstrar as possibilidades de seu reaproveitamento.
O levantamento de informações de arquivo sobre o parque imobiliário existente, proporciona a possibilidade de avaliar a dimensão e a densidade da ocupação e as características das estruturas arquitetônicas existentes. Tais dados, ao mesmo tempo em que permitem avaliar o potencial de aproveitamento imobiliário, oferecem condições para ensaiar hipóteses de cunho inovador, capazes de potencializar a apropriação dos recursos disponíveis.
Esta perspectiva permite fazer com que a pesquisa histórica e a identificação do patrimônio cultural possam convergir para a análise de sua apropriação pragmática. O juízo sobre a qualidade das estruturas arquitetônicas passa também a constituir componente essencial para avaliação do potencial de aproveitamento imobiliário. Em outras palavras, ao contrário do aparente antagonismo entre o valor cultural e o valor econômico, trata-se de buscar demonstrar o valor econômico de um bem cultural e reconhecer, da mesma forma, o valor cultural de um bem econômico.
Em síntese, somente o conhecimento detalhado das estruturas urbanas e arquitetônicas sob este duplo aspecto será capaz de demonstrar, aos vários agentes, a viabilidade de reabilitação da área central. É nesta perspectiva que se inscreve a pesquisa proposta, cujos resultados preliminares apresentamos a seguir.